Folha de S. Paulo


Para Defensoria Pública, Doria faz ações 'a toque de caixa' na cracolândia

Marivaldo Oliveira/Código19/Folhapress
Morador é socorrido após queda de muro de imóvel na al. Dino Bueno; prefeitura preparava demolição no local
Morador fica ferido em queda de muro de imóvel na cracolândia; prefeitura prepara demolições na região

Com discurso de acelerar a extinção da cracolândia, no centro de São Paulo, a gestão João Doria (PSDB) deixou nesta terça-feira (23) três feridos ao iniciar a demolição, com escavadeira, do prédio de uma pensão que ainda estava ocupada por moradores –e bem no momento da visita do prefeito à região.

As ações são questionadas pela Defensoria Pública de SP. "A prefeitura está se utilizando de um instrumento jurídico para fazer intervenções urbanísticas a toque de caixa, sem discutir com a sociedade, sem avisar os proprietários, sem nenhum plano para realocar vulneráveis que vivem nesses locais", afirmou Rafael Faber, coordenador do núcleo de habitação e urbanismo da Defensoria.

Enquanto isso, dois dias após a operação policial do governo Geraldo Alckmin (PSDB) que prendeu traficantes e expulsou usuários de droga, a vizinhança da cracolândia viveu um dia de confusão com dependentes espalhados no centro, com uma série de roubos que levou lojistas a fecharem as portas.

Ao menos duas centenas de recém-saídos da cracolândia ocuparam a praça Princesa Isabel, a 400 metros do antigo "fluxo" (ponto de concentração de usuários de crack).

O local foi cercado por dezenas de policiais e, após tentativa de revista da PM devido à suspeita de criminosos armados, houve uma correria em massa do grupo rumo ao centro da cracolândia, em meio a pedestres e veículos. Os dependentes acabaram dispersados com bomba de efeito moral pela polícia. "Eles tentaram voltar para o fluxo, mas nós não vamos permitir", afirmou Miguel Daffara, major da PM.

SEM TEMPO

A intervenção da gestão Doria no quarteirão da cracolândia que concentrava viciados até domingo (21) começou pela manhã. Comerciantes não tiveram tempo para a retirada de pertences e produtos das lojas antes que funcionários da prefeitura lacrassem os locais com muros.

Perto das 12h, escavadeiras do município chegaram nas ruas Dino Bueno e Helvétia. A ideia de Doria era demolir imóveis de um quarteirão inteiro frequentados por usuários da cracolândia.

Os proprietários dos imóveis não foram avisados da demolição. No sábado, a prefeitura publicou um decreto transformando a área como de interesse público. Nesta quarta (24), haverá outra publicação, reforçando ser um "momento de emergência".

Anderson Pomini, secretário de Negócios Jurídicos, afirmou que a situação "emergencial" e "extraordinária" da área e de "domínio do tráfico" justifica as demolições sem aviso aos donos. Ele diz que os proprietários serão indenizados pela prefeitura posteriormente.

Por volta das 14h, Doria foi à cracolândia, e escavadeiras começaram a demolir paredes de um prédio usado como pensão na Dino Bueno. O local estava ocupado por moradores. A parede derrubada atingiu três pessoas –uma teve lesões na perna, e duas tiveram ferimentos leves. Doria dava entrevista no momento e foi avisado por repórteres (leia mais abaixo).

Duas horas depois, três secretários municipais deram entrevista, sem presença do prefeito, para dar explicações. Segundo Marcos Penido, da pasta de Infraestrutura e Obras, a prefeitura não sabia que havia pessoas no prédio. "Essas pessoas entraram por uma passagem clandestina. Foi uma situação inusitada. Daqui para frente, tomaremos medidas adicionais para evitar que isso ocorra novamente", afirmou.

Segundo ele, a prefeitura havia avisado que a área estava isolada e que as demolições iriam começar. Moradores do prédio contestam. "Ninguém avisou. Eu estava no quarto e ouvi um barulho de obra. De repente, começaram a gritar, falando que tinha gente machucada", afirma Alessandra Feliciano, 23, que mora com seu filho de 10 meses na pensão.

A gestão Doria afirma que vai apurar as causas do acidente e suspendeu temporariamente as demolições. Horas mais cedo, a prefeitura lacrou estabelecimentos comerciais. Ao menos dois bares foram fechados.

"Um guarda entrou, disse que eu não tinha extintor e, por isso, seria fechado. Não deram tempo de eu tirar nada", disse a comerciante Magnólia Porto Coutinho, 45.

Na frente da reportagem, guardas deram duas horas para Magno Lima, 36, retirar os materiais de dois bares. "Minha família depende de mim. Como vou tirar tudo isso em duas horas?", questionou. Segundo Pomini, os pertences serão devolvidos "oportunamente".

Descaminhos da cracolândia

PLANEJAMENTO

A gestão João Doria afirma que, após a ação policial, está colocando em práticas as medidas de acolhimento e tratamento previstas no programa Redenção. A prefeitura afirmou que a ação foi da polícia "de acordo com critérios de inteligência". "Cabe aos responsáveis pela ação avisar os órgãos competentes e a Promotoria, se for o caso", afirma em nota.

A administração nega que a Guarda Civil tenha feito vistorias em imóveis, o que foi presenciado pela Folha. "A GCM tem a função de acompanhar e proteger os funcionários públicos no exercício de suas funções", diz. O município afirmou ainda que a GCM atua "estritamente" de acordo com a lei que estabelece a conduta das guardas municipais.

Sobre as demolições, a prefeitura afirmou que os imóveis que sofreram intervenções estão vazios e que foram publicados decretos de utilidade pública em relação a eles. "Nos locais onde há moradores, as famílias serão cadastradas pela Secretaria de Assistência Social", afirmou.

O secretário de Obras, Marcos Penido, afirmou que o isolamento deveria ter sido mantido durante a demolição. Segundo a prefeitura, as pessoas que estavam no local haviam sido retiradas antes e chegaram lá por uma entrada clandestina. Os moradores desmentem essa versão.

A prefeitura afirma que vai esclarecer todas as solicitações sobre o assunto feitas pelo Ministério Público.

ESTADO

O governo Geraldo Alckmin (PSDB), que faz ação conjunta com a prefeitura, afirma que reforçou o policiamento com 80 policiais da cavalaria e do Choque e Rocam. O Estado afirmou também que a ação integrada com o município já acolheu mais de 500 pessoas e atendeu 219 dependentes químicos no programa Recomeço.

O governo afirmou que também está à disposição do Ministério Público para esclarecimentos, se necessário.

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HORA A HORA

Demolição de imóveis na região da cracolândia teria início nesta terça (23), mas ação apressada deixa feridos e João Doria (PSDB) se distancia

8h
> Assaltos são relatados na praça Princesa Isabel, onde se formou novo acampamento de dependentes químicos

10h
> Guardas e agentes da prefeitura visitam pensões e comércios, pedindo que pessoas deixassem os locais

11h
> Em entrevista coletiva na prefeitura, João Doria (PSDB) se nega a falar sobre a cracolândia

14h
> O prefeito visita a região para acompanhar o início das demolições na alameda Dino Bueno e na rua Helvétia

> Escavadeira da prefeitura começa a demolir pensão com moradores dentro. Três pessoas ficam feridas

16h30
> Sem Doria, prefeitura admite responsabilidade pelos feridos

> Policiais dispersam dependentes, mas eles retornam à praça P. Isabel


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