Folha de S. Paulo


'Expulsos' pela chuva, desalojados do RS improvisam tendas em rodovia

Desde o começo do mês, Marcelo Silva Tavares, 37, veste uma roupa impermeável para enfrentar a água suja que bate na altura do peito e poder chegar até sua casa, na ilha do Pavão, em Porto Alegre. O imóvel, assim como a maior parte da ilha, foi alagado há três semanas, quando começaram as fortes chuvas no Rio Grande do Sul.

A roupa custou R$ 170 e foi comprada com o dinheiro de uma vaquinha feita por desabrigados que, como ele, estão acampados à margem da BR-290. Tavares é uma espécie de guardião dos desalojados. Ele verifica se o que restou dentro dos imóveis não foi roubado, dá ração a seus cães e aos dos vizinhos, refugiados nas sacadas, e conta o que viu às dezenas de desabrigados que improvisaram casas com lona e sobras da estrutura de uma unidade abandonada da Polícia Rodoviária.

Na capital gaúcha, 10 mil pessoas foram afetadas pelas chuvas, das quais 1.500 estão fora de casa. A prefeitura abriga 630 pessoas, 230 delas no ginásio municipal Tesourinha. No Estado, há 124 cidades afetadas pelas chuvas e 159 mil pessoas atingidas.

MORANDO NA KOMBI

Famílias inteiras levaram para a margem da rodovia tudo o que foi possível antes de serem expulsos pela água: algumas roupas e alimentos.

Móveis e eletrodomésticos foram perdidos. Galinhas, cães e até cavalos ficaram para trás. Alguns, como a família de Milton Mota, 30, da ilha dos Marinheiros, resolveram morar em uma Kombi.

A mulher de Mota, Itajara Figueiró, 31, conseguiu recuperar da água o álbum de fotos da família. Os dois estendiam as fotografias para que secassem em um raro momento de sol. São registros da infância de ambos, de festas familiares e do nascimento dos filhos, uma jovem de 16 e um bebê de dois anos, que também dormem na Kombi.

A única água potável disponível é doada por voluntários. O caminhão-pipa da prefeitura não abastece mais o local desde que o fornecimento foi normalizado –depois que as bombas pararam por falta de luz. Mas os moradores não conseguem entrar em casa para usar a água.

"Montei uma barraquinha de lona para tomarmos banho com privacidade, de bacia mesmo", conta Itajara.

Todos dizem que precisam de doações para os animais e cuidados de veterinários. Tavares ainda tem ração para sua égua, Chiquinha. Mas, perto dali, um cavalo muito magro comia restos de macarrão. Chiquinha estava sendo encilhada para se exercitar, já que não tem percorrido os cinco quilômetros diários com Tavares na coleta de lixo reciclável. Ele perdeu R$ 2.000 em material, armazenado em casa. Como não tem onde guardar o papelão, não está trabalhando.

A transexual Alessandra Silveira, 52, cuidava de 40 cães que foram levados por voluntários. Ela e o companheiro ficaram só com uma ninhada de gatos recém-nascidos. Acampada à beira da estrada, ela perdeu todos os móveis.

SEM AULAS

Crianças e adolescentes acampados têm faltado a algumas aulas desde o início das chuvas. "Eles perderam cadernos e mochilas. Alguns dias chove tanto que eles não saem e algumas escolas suspendem as aulas", conta Andréa Pereira Gomes, 31, mãe de três crianças.

As gêmeas de nove meses Aylana e Dyandra estão resfriadas por causa do tempo úmido. Elas moram em uma barraca com a mãe Maíra Woloski de Mello, 24. "Ainda bem que temos recebido doações de fralda", diz ela.

Além da chuva, as mães temem pela segurança das crianças, expostas aos riscos da estrada federal, por onde caminhões passam em alta velocidade.

Na quinta (22), o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati (sem partido), foi recebido pela presidente Dilma Rousseff (PT). Ele pediu para que a situação de emergência fosse reconhecida pelo governo federal, o que facilitaria a reconstrução e a concessão de benefícios para os afetados. Segundo a assessoria do prefeito, o pedido deve ser atendido parcialmente porque os danos calculados pela prefeitura (R$ 59 milhões) não alcançam 2,2% da receita líquida do município, como determina a lei.


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