Folha de S. Paulo


Personal trainer ganha medalhas após transplante e câncer

Liège Pereira Gautério, 42, passou por um transplante de pulmão em 2011.

Neste ano, além de descobrir um câncer de mama, a personal trainer, professora de pilates, bióloga e fonoaudióloga ganhou a medalha de ouro nos 100 m e a de prata nos 200 m nos Jogos Mundiais para Transplantados, disputados em agosto na Argentina.

Agora, a gaúcha sonha em levar esportes a outros transplantados e em incentivar a doação de órgãos.

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Edu Andrade/Folhapress
Liège Gautério, 42, medalhista nos Jogos Mundiais para Transplantados
Liège Gautério, 42, medalhista nos Jogos Mundiais para Transplantados

Descobri em 2003 que tinha fibrose pulmonar. Estava num treino de musculação e não aguentei a dor nas costas. Fui para o pronto-socorro e, depois de um raio-X, me mandaram com urgência para o centro cirúrgico –eu tinha sofrido um pneumotórax [acúmulo de ar ao redor dos pulmões].

A fibrose é uma doença progressiva, que faz com que o pulmão vá perdendo a sua capacidade de se expandir e se retrair. Ele vai endurecendo. Ela evolui, em média, por uns sete ou oito anos. Quando a avaliação é que a pessoa não sobreviverá mais que dois anos, ela entra na lista do transplante.

Fui colocada na fila em 2011, quando eu estava completando a faculdade de educação física. Sentia falta de ar até para escovar os dentes, usava oxigênio 24 horas por dia. Uma vez, fui ao estágio de cadeira de rodas. Queria me formar.

Já tinha feito duas faculdades, de biologia e fonoaudiologia. Dava aulas no Estado e atendia em meu consultório. Mas a educação física era o meu grande sonho.

Em 31 de julho de 2011, compareci a minha formatura –teimosa, não quis usar o oxigênio, ficou debaixo da minha cadeira. Fiz o transplante em setembro daquele ano.

A cirurgia e a recuperação foram um sucesso. Em média, o transplantado fica na UTI por uma ou duas semanas, mas eu saí em dois dias! Com três meses, já estava trabalhando e treinando.

Antes da doença eu sempre fora muito ativa. Fiz balé, ginástica, musculação, natação, pedalava na rua. Participei de um grupo de street dance por dez anos, treinava de domingo a domingo.

Com um novo pulmão esquerdo, voltei a fazer musculação e caminhada. Treinava seis dias por semana.

COMPETIÇÃO

Fiquei sabendo dos Jogos Mundiais para Transplantados pelas redes sociais –era a 20ª edição, mas eu nunca tinha ouvido falar. Vi ali uma oportunidade de divulgar a doação de órgãos.

No meio do ano passado procurei um treinador de atletismo. Tudo ia bem, até que em novembro fraturei o tornozelo e tive que ficar imobilizada até janeiro. Tentei retomar os treinos em fevereiro, mas não estava pronta, e passei mais três meses parada.

Dei uma desanimada, mas não desisti. O Mundial era em agosto, na Argentina. Decidi que iria nem que tivesse que caminhar os 100 metros.

O que conta nos Jogos é a celebração da vida, de uma segunda chance. Quando soube que nenhuma mulher brasileira iria participar, a vontade veio mais forte.

Consegui retomar os treinos em junho, mesmo tendo descoberto, em maio, um câncer na mama esquerda.

Em Mar Del Plata –onde foi disputado o torneio– o clima nessa época é terrível, muito vento e frio, um veneno para um transplantado pulmonar. Havia seis atletas inscritas para os 100 metros rasos.

Larguei com toda a velocidade que o meu corpo permitiu. Quando percebi que, a uns 25 metros da chegada, ninguém se aproximava, pensei: "Não pode ser, não acredito, vou ser ouro!"

Corri pelas famílias de transplantados pulmonares, pelos que fizeram transplantes, pelos que esperam e pelos que partiram. Fui lá para representá-los, divulgar que é possível ter uma vida normal e que as doações de órgãos têm que aumentar no Brasil.

Fiquei tão de alma lavada com a vitória que desisti de participar dos 200 m, mas fui convencida a ir. Corri na raia 8, a pior, e não tinha treinado pra essa distância. Larguei bem devagarinho. Na metade, vi que ainda tinha sobrado alguma energia. Pensei: "Vai que dá". E deu, prata!

SONHOS

Agora estou me recuperando –voltei de Mar Del Plata com um quadro alérgico e a imunidade baixíssima. Por isso, tive que adiar a minha mastectomia mais uma vez, depois de postergá-la por causa do Mundial.

Vou fazer a cirurgia no dia 29 de setembro, no aniversário de quatro anos do meu transplante de pulmão.

Meu sonho é que a lista de espera acabe. É inadmissível ver pessoas morrendo na fila de transplantes. Também desejo que haja um núcleo de esportes para transplantados no Brasil. Estou montando uma academia, quem sabe não é um início?


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