Folha de S. Paulo


Em SP, jovem infrator passa de 'empático' a 'imaturo' em um mês

Na Fundação Casa, a antiga Febem de São Paulo, um mesmo jovem infrator é avaliado como "autocrítico" e "empático" na hora de ser liberado e como "imaturo" e "sem autocrítica" quando volta ao crime, com apenas um mês nas ruas.

Esse adolescente, novamente internado, "recupera" a "autocrítica" e a "empatia" em sete meses na fundação e é solto. Mas, dois meses mais tarde, perde-as, "não reconhece seus erros", volta a infringir a lei e regressa, pela terceira vez, à instituição.

Isso é o que mostram relatórios psicossociais da Fundação Casa, imprescindíveis para embasar decisões judiciais sobre adolescentes. A Folha teve acesso a relatórios de entrada e de saída de oito jovens do Estado.

Segundo servidores da instituição ouvidos sob a condição de anonimato, esses casos exemplificam como é feita boa parte dos relatórios, independentemente do tipo de crime praticado pelo menor.

Em um desses casos, um jovem autor de roubos de carro, após descrições de experiências positivas na fundação, tem o nome trocado no relatório -o que sugere que o trecho (que indica à Justiça a soltura dele) pode ter sido copiado e colado de outro caso. A Justiça o liberou. Em dois meses, ele reincidiu e voltou.

Como prevê o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), os relatórios têm papel central no sistema socioeducativo, servindo, na maioria das vezes, como a principal ou a única base dos juízes. São documentos assinados por profissionais da Fundação Casa das áreas de psicologia, serviço social, pedagogia, saúde e segurança.

Fabio Braga/Folhapress
Portão de entrada de unidade de internação de jovens infratores da Fundação Casa (antiga Febem de SP), na Vila Maria, zona norte
Entrada de unidade de internação de jovens infratores da Fundação Casa, na Vila Maria, zona norte

Na entrada no sistema, o relatório é feito por uma equipe da unidade de internação provisória, onde o jovem aguarda a sentença que o internará ou não, com base nesse documento. Na saída, o relatório é feito na unidade onde foi cumprida a internação. Mesmo sendo equipes distintas, em tese, elas deveriam observar aspectos semelhantes, para evitar disparidades.

VAGAS E VIOLÊNCIA

Para Munir Cury, procurador de Justiça aposentado e um dos autores do ECA, variações bruscas, em tão pouco tempo, indicam que há problemas nesses laudos. "Esses relatórios que se reproduzem me fazem ver que é uma criação de vagas", diz.

Em fevereiro, em um ofício, a fundação afirmou enfrentar "uma crise sem precedentes" de superlotação.

"Quando um adolescente é liberado, ele deveria ser acompanhado como egresso, e a Fundação Casa não o faz", diz Cury.

São raros, por exemplo, os casos em que o egresso vai para a semiliberdade (sai de dia, dorme na fundação à noite), como prevê o ECA.

Nos relatórios obtidos pela Folha, a Fundação Casa indica a passagem direto para a liberdade assistida (quando o jovem tem encontros periódicos com um orientador), "pulando" a semiliberdade. Semiliberdade é responsabilidade do Estado. Já a liberdade assistida, da prefeitura.

Em outro caso analisado, um menor reincidente em tráfico, internado em uma unidade da região metropolitana de São Paulo, obteve o relatório de liberação após tornar-se alvo de violência.

À reportagem a mãe dele afirmou que a diretora da unidade ofereceu-lhe "ajuda" durante sua internação, desde que ele contasse o que os colegas faziam de errado.

Com fama de dedo-duro, o jovem apanhava dos outros internos diariamente. A violência ficou tão insustentável que, em cinco meses, ele foi liberado com um relatório que atestava sua "evolução". "Em vez de voltar de lá redimido, ele voltou revoltado", diz a mãe. Os registros corroboram a versão dela.

Como a Folha mostrou em maio, com base em levantamento do Ministério Público, o tempo médio de internação na capital é de sete meses.

O máximo permitido pelo ECA é três anos. De uma amostra de 88 autores de homicídio qualificado, latrocínio e estupro (equivalentes a crimes hediondos), 76 obtiveram o relatório indicando sua liberação antes de dois anos. Entre eles estava o adolescente que matou Victor Hugo Deppman, 19, num assalto na porta de seu prédio, na zona leste, em abril de 2013.

Apesar de esse infrator ter sido bem avaliado e solto 13 meses antes do prazo máximo, foi na esteira desse caso que o governador Geraldo Alckmin (PSDB) levou ao Congresso a proposta de aumentar para oito anos o tempo máximo de internação.

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REPORTAGEM NÃO IDENTIFICA JOVEM E RESPEITA ESTATUTO

A reportagem publicada acima não identifica menores infratores nem possibilita que isso seja feito. Em respeito ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), reportagens da Folha há anos não divulgam nomes, iniciais, situações ou locais que possam de algum modo identificar esses jovens.

Apesar desse histórico de respeito ao ECA pelo jornal, a juíza Luciana Antunes Ribeiro Crocomo decidiu na última sexta-feira (17) que "qualquer divulgação do conteúdo dos relatórios obtidos ilegalmente" resultaria em infração administrativa, sujeita a aplicação de pena de multa e busca e apreensão da publicação.

Corregedora do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude da capital, Crocomo tomou essa decisão sem conhecer o teor da reportagem em produção.

Em razão da decisão e para permitir o atendimento ao ECA, o jornal suspendeu momentaneamente a publicação da reportagem, que agora é feita sem nenhuma alteração.

A decisão da juíza foi motivada por pedido de providências feito pela Fundação Casa depois de a Folha ter procurado a instituição para ampliar a apuração da reportagem.

Embora desde o início o jornal tenha informado que se comprometia a não identificar os adolescentes infratores citados nos relatórios da Fundação Casa, esse fato não foi levado em consideração na decisão da juíza.

Jovens infratores


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