Folha de S. Paulo


Rio, 500 anos: Rio de Janeiro, 1º de março de 2065

A convite da Folha, quatro autores cariocas de diferentes estilos imaginam como será a cidade em outro aniversário, daqui a 50 anos.

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Meu caro Marciano:

Seu pedido de notícias chega no momento em que preparo a festa dos meus 123 anos, felizmente com boa saúde.

Minha rotina continua simples: acordo cedo, me energizo com as três ou quatro pílulas que constituem minha alimentação diária e leio as notícias, por meio de três canais de informação: um conservador, um liberal e outro popular. Estes me bastam, pois todos os outros são tendenciosos, como os dos velhos tempos.

Há três décadas e meia, depois daquilo tudo que ocorreu, o Rio voltou a ser a capital, tranquila e organizada: não há mais pobres nem ricos; as religiões deram lugar a filosofias; o Estado é finalmente laico; e a representação do povo, no governo e na mídia, é a exata expressão, numérica e qualitativa, de sua presença na sociedade.

Está tudo ótimo: segurança pública; educação; transportes; sistemas de saúde; políticas habitacionais... Na cultura, museus e bibliotecas funcionam 24 horas; os teatros não encenam mais nada da Broadway; os estádios de futebol (as torcidas organizadas se autodestruíram) sediam jogos de pura arte.

As favelas hoje são bairros: os do sul, todos de turistas, que só vêm nas férias; os de norte e oeste enfeitam as encostas dos morros replantados. A baía já tem até baleias de novo. E os rios Irajá, Sarapuí e Miriti têm água como a dos tempos dos índios.

Dias atrás, foi o Carnaval. Agora, em recintos fechados e sem nada de "bloco de camiseta". O ponto alto continua sendo as escolas, hoje realmente núcleos de ensino de música e artes cênicas que, na festa, com seu próprio dinheiro, amealhado licitamente, apresentam os resultados de cada ano letivo.

Na escola vencedora deste ano, o tema contava a lenda de uma ex-favelada que, com influência e o poder do seu amor, um emir árabe, tornou-se presidente da maior estatal do país. Lenda, claro! Mas um belo conto de fadas, cantado em estilo "sertanejo universitário", mas tão bem feitinho que até parecia ser música mesmo.

Seria bom ter você na festa dos meus 123 anos e do quinto centenário da cidade. O único problema são os comes e bebes. Feijoada, agora, ninguém mais sabe o que é. Tripa à lombeira, as pessoas pensam que é palavrão. E chope na pressão, nem pensar. Porque cerveja hoje é só espírito de malte. E espírito não usa colarinho.

Mas está tudo ótimo. O Rio está "xou" (a grafia foi abrasilerada). E nós temos mais é que comemorar seus 500 aninhos. Em seu corpinho de 50.

NEI LOPES, 72, é escritor e compositor, carioca suburbano.


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