Folha de S. Paulo


Pais não envelhecem

Chego atrasada. Meu pai diz "ela chegou e tá toda maquiada". Minha mãe diz "tá toda maquiada, vai sair?". Minha mãe fez nhoque. Isso quer dizer que ela esmagou bolinha por bolinha porque se recusa a comprar massa pronta. Minha mãe odeia quando gastamos 200 reais num almoço. "Em casa eu gasto vinte reais e faço uma comida mil vezes melhor que desses restaurantes metidos a besta que você gosta". Meu pai traz, dentro de uma mochilinha da Sadia, chocolates de presente e dois "tapouers" pra devolver. Ele conta que está tomando açaí "pra não ficar esses velhos magrelos". Minha mãe usa um chinelo dourado.

Queima, queima, queima a sola do pé. O exame acusou neuropatia. O médico explicou que ele não é diabético mas é vegetariano. Eu não entendo nada mas dou conselhos do tipo "andar é bom" só porque na minha imaginação meus pais estarão sempre andando. Ágeis e entusiasmados. A cabeça dói um pouco todos os dias exatamente às seis da tarde e ele fica "de saco cheio da vida". Ele conta que quer uma namorada pra "sair um pouco, ir ao cinema, jantar, viajar". Ele conta que tem uma moça na vizinhança que dá bola pra ele. "Então namora com ela!". Ele aumenta a voz: "Deus me livre, ela vai querer sair, ir ao cinema, jantar, viajar".

Minha mãe fez salada de quinua orgânica. Isso quer dizer que ela acordou cedo e foi na feira do Parque da Água Branca. Meu pai trouxe ferreiro rocher. Já disse mil vezes que não gosto desse chocolate mas ele acha chique- por causa de um comercial que tinha um mordomo- e me dá bronca: "sai desse regime, homem que é homem gosta de mulher mais cheinha".

Minha mãe está com labirintite. Por causa da tontura, tropeçou e acha que quebrou o dedo. Por causa da dor no dedo, não dormiu. Porque não dormiu, está mal-humorada. Porque está mal-humorada, tomou um quarto de não sei o quê. Por conta disso, piorou da tontura. Porque piorou da tontura, acabou de apoiar "errado" o dedo quebrado e agora tem certeza: quebrou.

"Deixa eu ver, mãe". "Não, isso não é nada". "Quer ir ao hospital?". "Não, já disse que não é nada". "Então tá!". "Olha, Carlos, quebrei o dedo e sua filha não está nem aí!".

Meu pai trouxe duas garrafas de suco de uva branca. Isso quer dizer que tava rolando alguma promoção no Kanguru. Kanguru é o supermercado perto da casa dele. Ele vem todo cheiroso e arrumado e dá dois beijinhos na minha mãe. Meus pais estão separados há trinta e um anos mas quando minha mãe abaixa pra pegar um guardanapo ele levanta as sobrancelhas.

Eu estou com dor nas costas. Não sei se machuquei fazendo pilates ou se vou ter uma recaída da gripe. Eu estou com os olhos secos. Não sei se o ar está podre ou eu vou ter uma recaída da rinite. Eu estou triste. Não sei se é porque meus pais estão ficando velhos ou se porque eu não consigo ficar velha. Ao invés de chorar, dou uma gargalhada alta. A vida é sempre mais louca do que triste.

O cabelo da minha mãe ficou ótimo. Está bem curto e com mechas loiras. "O cabeleireiro acertou dessa vez, hein, mãe". "Claro, eu MANDEI ele cortar do jeito que EU QUERIA". Meu pai fala baixo pra mim "essa baixinha é fogo". Ela pergunta o que estamos cochichando.

A cachorra pede colo e minha mãe começa a conversar com voz de criança. Eu distraio vendo emails no celular. Meu pai começa a dormir e só acorda porque sua barriga ronca. Ele vai até a varanda ver "como o dia está bonito". Eu e minha mãe nos olhamos, porque sempre achamos que ele vai é soltar pum. Ele volta maravilhado com o dia que está lindo e pergunta o que estamos cochichando.

Olho meus pais e, por mais que eu tente ver duas pessoas com 70 anos, vejo dois jovens sarados e corados com gostos antiquados para roupas e quadros.

Meu pai reclama que a pele do seu braço está molenga e manchada mas eu vejo o peitoral bronzeado e forte de quando frequentávamos piscinas. Minha mãe reclama que as pernas incharam e que os exames de sangue isso e aquilo, mas eu a vejo com seus cabelos de Farrah Fawcett usando uma de suas minissaias, causando paixões avassaladoras no trabalho. Sempre tinha algum homem sofrendo de amor em sua secretária eletrônica.

Às vezes ela vem com umas ameaças muito maduras do tipo "quando eu morrer, você vai lamentar MUITO não ter me levado ao shopping pra comprar um chip". Eu nunca caio nessa. Desde criança eu sei que mãe não morre.

Minha mãe era tão linda que eu gostava de ficar sentada no chão do banheiro, vendo ela tomar banho. Ela era tão linda que eu sempre a beijava na boca assim que ela adormecia. Tão linda que dos cinco aos doze anos eu fiz, sem parar, mais de mil cartas de amor pra ela. Em uma dessas cartas eu escrevi, dentro de um coração ensanguentado: você me fascina. Eu tinha oito anos. Eu não virei sapatão por muito pouco. Aliás, acho que sou um pouco sapatão.

Se eles continuarem com essa palhaçada, serei obrigada a cortar relações. Eles tentam me lembrar diariamente que estão velhos. Eu só consigo sentir raiva: por que essas pessoas absolutamente saudáveis e jovens e eternas insistem nesse papel ridículo de ficar velho, doente e um dia morrer? O que eles querem de mim deixando o tempo passar? Ainda mais amor?

Minha mãe diz que está há meses desanimada, sem vontade de sair de casa. Mas eu não escuto. Lembro dela secando os cabelos e ouvindo rádio no último volume. Ela dançava e cantava alto enquanto secava os cabelos. Parecia uma leoa. Dourada, vermelha. Sempre usando preto. Eu pensava: isso é ser mulher. Que legal ser mulher! E que mulher! Meu pai diz que se sente velho e cansado...mas eu o vejo em seu carro conversível, viajando com a minha mãe pra Gramado, usando camisas lilás com calças caquis. "Quanta coisa eu não fiz achando que seria jovem pra sempre!". Ué, e não tava certo em achar isso? Que cara doido!


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