Folha de S. Paulo


Tirando o atraso

Há seis anos, todas as terças e quintas, devo chegar às dez da manhã na minha terapia. Nunca cheguei antes das dez e vinte. Nunca, em seis anos, cheguei no horário. Já conversamos sobre isso (eu e minha analista) e levantamos algumas teorias: eu sou uma escrota que caga pro resto da humanidade; eu me acho uma estrela e os outros têm mais é que esperar por mim; eu menosprezo o meu tratamento, o meu dinheiro e os outros seres vivos do planeta, eu sou uma vagaba sem relógio e com déficit de atenção que desconsidera por completo o mundo a seu redor. São opções possíveis, mas não são as únicas.

Fiquei observando meu comportamento na última sexta-feira, quando devia pegar uma ponte aérea às oito da noite. Fiz toda a conta na minha cabeça: sair de casa às seis pra chegar às sete e embarcar às oito. Estava dentro do horário quando olhei minha mala fechada e começou a angústia: certeza que escolhi as piores roupas e não estou levando calcinhas suficientes.

Reguei todas as minhas plantas pela segunda vez: vai que da primeira não reguei direito? Comi um sanduíche, mesmo sem estar com fome: vai que me dá uma fome surreal e estou presa no trânsito? Passei o rímel marrom e achei que merecia uma mão do rímel preto. Passei a base líquida e achei que merecia uma mão do corretor de olheiras. Conferi se a porta da cozinha estava fechada pela nona vez e, antes de sair da cozinha, conferi de novo.

Já eram sete e meia da noite (e provavelmente as pessoas do meu voo já estavam acomodando suas bagagens de mão no compartimento localizado acima e blábláblá) quando eu, ainda em casa, percebi que os quadros da sala estavam tortos e que o meu sofá não combinava com a poltrona ao lado dele. Foi quando comecei a tremer. Meu corpo sempre dá um jeito de avisar que a coisa tá ficando feia. Comecei a fazer duplinhas, ao estilo "duas almofadas na cama, duas canecas na louça", e sabia que estava a poucos segundos de chorar porque um dia todos nós morreremos, incluindo nessa lista macabra meus pais, minha cachorra e...eu.

Peguei minha mala e chamei o elevador mesmo com a cabeça martelando em voz sexy e rouca "você deveria ter tomado outro banho, você deveria levar uma água, você deveria levar uma caneta pra escrever essas coisas todas que você deveria".

Tá, então sou controladora, ansiosa e maníaca e isso, dentre outras consequências malignas, me atrasa? Ainda não parece ser o suficiente.

Há dois anos, todas as quartas, eu devo chegar às nove da manhã na minha fisioterapia. Eu tenho problemas na lombar, cervical e tendinite no braço direito. É um horário de extrema importância pra mim. Mas nunca, nesses dois anos, cheguei antes das nove e meia. Ainda se meu atraso fosse sempre de vinte minutos, talvez eu tivesse alguma espécie de obsessão com o número, mas não: na terapia são vinte, na físio são trinta. Em almoços com amigas, são dezoito minutos. Com amigos, são vinte e cinco. Com ex namorados, no mínimo quarenta (e apenas nesse caso o atraso é milimetricamente calculado e sem adicional de culpa).

O gordinho carrancudo do horário seguinte até desistiu de tratar seu joelho. Vejam: eu faço mal às pessoas. Certa feita dei carona a uma senhora muito distinta, avó de uma amiga, e atrasei deixando a velhota na porta de seu prédio, num dia quente. Quando cheguei ela gritou: "assalto! Chamem a policia". Achei que era Alzheimer, mas era senso de humor: "você roubou meu tempo, minha filha, e isso é crime!". Quando a pessoa chega a ponto de causar transtornos a idosos, deveria ser punida por alguma lei.

Durante toda a adolescência, deixei meu pai plantado no carro, me esperando, mais de 1 milhão de vezes. Ele sempre esbravejava a mesma frase "se você faz pouco caso do seu pai, como vai tratar o resto das pessoas?". Mal, muito mal. Sou um lixo de ser. Já tem gente marcando almoço comigo meio dia e escrevendo "duas da tarde" na agenda do iPhone, que é pra não comprometer a amizade. Já tem produtor fazendo "planilha falsa" pra eu entregar o filme com seis meses de atraso e, sem saber, dentro do prazo.

Eu gosto das pessoas. Não como gosto de fazer compras e da minha cachorra, mas o suficiente para respeitá-las. Meu problema não é falta de caráter, mas uma profunda dificuldade em sair do automático sem ficar maluca. Talvez, como as crianças (e olha o atraso aqui de novo!), eu simplesmente não consiga entender quanto tempo cabe numa hora e quanta distância cabe num quilômetro. Vivo num mundo fantasioso no qual se vai de Perdizes até o Morumbi, pela marginal, em dia de chuva, em cinco minutos. Apenas porque "assim seria melhor e assim eu imagino".

Cheguei na terapia faltando cinco minutos pra acabar e então resolvi ir direto ao assunto: "como é tudo chato, caótico e um pouco sem propósito, uso a válvula propulsora do 'fodeu, tô atrasada pra cacete' pra desligar meus milhões de poréns e, como mais um idiota, correr". E então ela disse "seu problema é não querer ser mais um idiota. Daí você se acha especial e caga na cabeça dos outros. E daí você, egoísta e filha da puta e sem noção, atrasa".

Mentira, essa conversa nunca aconteceu.


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