Folha de S. Paulo


O Golpe de 16

Neste domingo (22), "Aquarius", de Kleber Mendonça Filho, poderá ser o primeiro filme brasileiro a levar a Palma de Ouro no prestigioso Festival de Cannes desde 1962, ano em que "O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte, foi vencedor.

Mendonça e Sonia Braga também são candidatos fortes aos prêmios de diretor e atriz –os últimos foram respectivamente Glauber Rocha, em 1969, por "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro", e Sandra Corveloni, em 2008, por "Linha de Passe".

Seja qual for o resultado, o cineasta pernambucano já conseguiu um feito notável.

Ao levantar com colegas de elenco e produção cartazes políticos no tapete vermelho de sua première, ele deu visibilidade internacional à teoria segundo a qual está em andamento um golpe de Estado no Brasil, cujo objetivo é retirar definitivamente Dilma Rousseff da Presidência, para efetivar Michel Temer em seu lugar.

A história é boa e renderia um longa –chamemos de "O Golpe de 16"–, que nas mãos de Mendonça certamente seria bom de se ver. Mas estaria na categoria ficção.

Nele, uma elite econômica não se conforma com o resultado das urnas e passa a conspirar com o pior da política e da imprensa para fazer o impeachment de uma presidente cujo único erro foi ser honesta demais, num partido que ousou tirar os pobres da miséria.

O problema é que a realidade é outra, mais feia e nuançada. Dilma foi afastada num processo político-jurídico legítimo, amparado pela Constituição e supervisionado por uma suprema corte insuspeita, que teve 8 de seus 11 integrantes indicados por presidentes petistas.

Se não roubou, não impediu que roubassem. Presidiu sobre a pior crise econômica em décadas, em parte resultado de decisões erradas que ela tomou. Foi alvo das maiores manifestações de rua do país desde as Diretas-Já. Bateu recordes de impopularidade. Isolou-se.

Michel Temer pode ter physique-du-rôle de mordomo de filme de terror, como brincava ACM –se vivo, Bela Lugosi seria uma boa opção para vivê-lo no hipotético filme de Mendonça–, mas foi eleito pelos mesmos 54 milhões de Dilma.

Se o presidente interino perder condições de governar ou se a chapa Dilma-Temer for impugnada pelo TSE, em processo que ainda corre, será afastado ele também, e novas eleições deverão ser convocadas, como aliás defendeu esta Folha em editorial.

Na cena final de "O Dragão da Maldade", de Glauber, há o seguinte diálogo entre os personagens do Professor e de Antônio das Mortes: "Eu divido o inimigo contigo. Só que você briga com sua valentia e eu brigo na sua sombra", diz o primeiro. "Isso não, Professor. Lute com a força de suas ideias, que elas valem mais do que eu", responde o segundo.

Eis um bom conselho. O resto é autoengano.


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