Folha de S. Paulo


De olhos bem abertos

"Gostaria de fazer uma pergunta bastante simples: a Folha continuará batendo na Rede Globo?" A questão deste leitor resume o espírito das manifestações que recebi a propósito da associação que dará origem a um novo diário especializado em economia, com lançamento previsto para o segundo trimestre do ano que vem.

Houve queixas exaltadas: "Deveria ter aprendido a não me surpreender com mais nada. Mas hoje tive um princípio de curto-circuito mental".

E outras irônicas: "Conseguirá a Redação da Folha se manter incólume diante de tão avassaladora paixão"? Um leitor comparou a aliança à que foi celebrada entre PSDB e PFL para a eleição presidencial de 1994. A parceria firmada entre os grupos proprietários, respectivamente, do primeiro e do segundo jornal do país em circulação (Folha e "O Globo") está inscrita em um movimento de concentração de capital que atinge a economia como um todo.

Faz parte também da estratégia desses grupos para fortalecer posições diante da perspectiva de aprovação da emenda constitucional que abrirá o setor de comunicações à participação estrangeira.

Por seu caráter empresarial e pelo potencial de ampliação para novos negócios, o acordo extrapola os limites do jornal Folha de S. Paulo e de seu relacionamento com o leitor, objeto central da atenção da ombudsman.

Mas não deixa de entrar nesse território. A preocupação manifestada pelas pessoas que me procuraram se refere aos efeitos que a parceria com a família Marinho poderá ter sobre o jornalismo praticado pela Folha.

O presidente do grupo, Luís Frias, afirma que a independência será mantida, seja para criticar as Organizações Globo, seja para divergir do novo jornal, o mesmo valendo para o outro lado.

"Há uma cláusula clara a esse respeito registrada no acordo", disse ele em conversa com a ombudsman na sexta-feira.

A desconfiança do leitor da Folha é tão compreensível quanto a lógica de mercado que determinou a aliança.

Exceto pela profusão de notícias sobre fusões e associações no exterior e no país, nada do que ele leu no jornal poderia tê-lo preparado para o anúncio da semana passada.

Pelo contrário. Na imprensa brasileira, é a Folha que faz, há anos, a oposição mais sistemática às ambições e métodos do maior grupo de comunicação do país.

Reportagens apontam avanço monopolista das ramificações do império. Colunistas enxergam manipulação e oficialismo no noticiário da Globo e de "O Globo".

Se não perde de todo o sentido, esse discurso fica bastante esvaziado à luz do acordo.

Levando em conta o retrospecto, o leitor tem o direito de considerar a união tão esquisita quanto os casamentos arranjados da novela das oito. E de temer que o "dote" inclua uma espécie de anistia jornalística.

A Folha nega que isso vá ocorrer. É importante que o faça, mas as dúvidas vão persistir. A declaração de intenções terá de ser testada na prática.

Exemplos em todo o mundo mostram que os parceiros tendem a se conter, e suas diferenças, a diminuir (a Folha e "O Globo" já têm, hoje, mais semelhanças do que tinham há poucos anos). É grande, portanto, o desafio presente no compromisso assumido diante do leitor.

Não é caso de esbugalhar os olhos de espanto, mas de mantê-los bem abertos, para observar o jornal e questioná-lo no momento.


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