Folha de S. Paulo


O sonho da casa própria

RENATA LO PRETE

"Fuja do financiamento imobiliário." Essa recomendação taxativa, feita pela Folha na segunda-feira passada, causou um barulho de proporções que o jornal e a ombudsman não viam havia muito tempo.

O texto em questão afirmava que "financiar a casa própria para fugir do aluguel é uma ilusão", pois "paga-se, paga-se, e a dívida não pára de subir".

O melhor, concluía o Folhainvest, é aplicar o dinheiro e "adiar o projeto até dispor da quantia necessária para comprar à vista o imóvel dos seus sonhos".

Os protestos mais inflamados partiram de anunciantes do setor imobiliário, de importância estratégica na disputa de mercado entre a Folha e seu concorrente local, "O Estado de S. Paulo".

Foi fácil entender a reação de empresários e executivos a uma reportagem que chegou ao ponto de fazer o seguinte alerta ao leitor de classificados: "freie o impulso ao se deparar com ofertas que parecem se encaixar direitinho no seu orçamento".

Difícil foi explicar que em qualquer jornal sério vigora a independência entre Redação e Departamento Comercial.

Dentre os anunciantes que me procuraram, alguns reconheceram a necessidade e o valor dessa separação "Igreja-Estado".

Argumentaram, no entanto, que a reportagem não foi equilibrada, porque ouviu apenas os bancos, tão interessados nas reservas do leitor quanto construtoras e incorporadoras.

Mas houve quem mandasse a independência e a ombudsman às favas.

"Não é de anúncio que o jornal vive?", perguntou um interlocutor que falava em boicote publicitário.

Sem dúvida. Mas a receita será insuficiente se o leitor não puder ter certeza de que os assuntos não serão promovidos ou eliminados das páginas ao sabor dos interesses dos anunciantes. Para usar uma palavra surrada, se o jornal não tiver credibilidade.

A Folha sentiu a pressão.

Na quarta-feira, dedicou página inteira a uma espécie de direito de resposta informal do mercado imobiliário. Em contradição típica de operações apaga-incêndio, o material dizia exatamente o inverso do que o jornal havia afirmado.

Assim, dois dias depois de receber o veredicto de que "financiamento imobiliário é mau negócio" e "sair do aluguel e se endividar não vale a pena", o leitor encontrou a análise de que esse "é um bom negócio" e "a melhor opção é não demorar a realizá-lo".

Quem não havia lido o Folhainvest corria o risco de nem entender o que estava em discussão, pois da reportagem original dizia-se apenas que havia "avaliado o financiamento imobiliário", como se fosse heresia repetir a advertência da segunda-feira.

Os anunciantes foram mais ruidosos, e tiveram seu ponto de vista registrado com rapidez e destaque inacessíveis ao leitor comum. Mas não foram os únicos a protestar.

Um leitor criticou a projeção intitulada "Troque seu apartamento por uma mansão", em que se calculava quanto dinheiro a pessoa acumularia se aplicasse mensalmente, no mercado financeiro, o mesmo valor das prestações.
"O autor se esqueceu de que a grande maioria dos brasileiros que procuram o Sistema Financeiro de Habitação está pagando aluguel." Para reunir valor equivalente ao da prestação, ponderou, "o pretenso comprador teria de morar debaixo da ponte com sua família por dez anos".

Fiz comentário semelhante na crítica interna que dirijo aos jornalistas.

"A premissa de adiar a compra para efetuar o pagamento à vista é válida", reconheceu um outro leitor. "No entanto, apenas as pessoas que já possuem imóvel podem se valer de tal expediente. O artigo ignora esse fato."

Ele continuava: "Em nenhum momento foi lembrado que para comprar imóveis por meio do SFH é possível utilizar o saldo do Fundo de Garantia. Mais uma vez não se prestou um serviço completo".

"Não venho advogar em nome de agentes financeiros ou incorporadores", terminava. "Defendo apenas que seja apresentada a informação completa, para que o leitor possa, com seus próprios meios, julgar o assunto tratado."

A editora do Folhainvest, Mara Luquet, discorda da idéia de que o mercado imobiliário deveria ter sido ouvido na reportagem.

"O assunto não era o imóvel enquanto investimento, mas sim o custo de financiar a casa própria. Financiamento é um produto bancário."

Ela vê mérito nas observações dos leitores e diz que, diante do grande número de mensagens recebidas ao longo da semana, o caderno voltará ao assunto amanhã, com um serviço de esclarecimento de dúvidas. "Sabemos que o tema não foi esgotado."

A Secretaria de Redação avalia que não houve falha na reportagem.

Quanto a mim, nada vejo de errado na conclusão geral do caderno. Não resta muita dúvida de que, diante das atuais taxas de juros e das incertezas a respeito dos rumos da economia, o leitor deve, tanto quanto possível, manter-se longe de financiamentos, sejam eles do que forem.

Merece registro o fato de que nenhum dos protestos que recebi, entre violentos e moderados, questionava os cálculos que mostravam o efeito devastador dos juros sobre o saldo devedor.

Se anunciantes consideraram o resultado "contrapublicidade", no dizer de um deles, paciência. Não é essa a preocupação que deve nortear o trabalho da reportagem.

Permanecem, a meu ver, dois problemas, ambos mencionados por mim em outras ocasiões.

Um deles é o distanciamento que o Folhainvest mantém da realidade de grande parte do leitorado do jornal. É esse o cerne dos depoimentos que relatei acima. São pessoas que dizem: não tenho como pagar aluguel e fazer tal desembolso mensal; posso abdicar de uma série de outros gastos, mas preciso morar em algum lugar; quais são as opções para mim? O jornal não esclarece.

É um leitor que dificilmente conseguirá trocar o apartamento "por uma mansão" (termo, aliás, que o "Manual" da Folha manda evitar, porque "envolve conceitos vagos e subjetivos").

O outro problema é a falta de distanciamento em relação aos fundos que alimentam a maior parte do noticiário do caderno.

Os gestores têm tanto interesse em vender seu produto quanto os representantes do mercado imobiliário que procuraram o jornal enfurecidos.

A mesma reportagem que corajosamente recomendava cuidado com ofertas de classificados sugeria que "uma aplicação num fundo DI pode transformar seu sonho de comprar a casa própria numa realidade bem mais suave".

Isso não é texto de prestação de serviço.

Se o cenário de incerteza econômica leva o Folhainvest a aconselhar que o leitor não se endivide, também deveria fazer com que o caderno se cercasse de cuidados na hora de sugerir aplicações, por mais "conservadoras" que sejam.

Afinal, como foi observado no meio da reportagem de segunda-feira, as projeções ali apresentadas valem "se os sinais emitidos pelo governo se confirmarem".

O jornal pode garantir que vão se confirmar?

O Folhainvest demonstrou coragem editorial ao tratar do financiamento imobiliário. Mas ainda deve ao leitor um sinal claro de independência em relação à sua principal fonte de informações.

*

A luz apagou. E o jornal sumiu. Ao longo da sexta-feira, leitores ligaram à ombudsman para saber o que havia acontecido com a Folha.

Segundo esclarecimento publicado ontem, o blecaute prejudicou especialmente o jornal, porque o fornecimento de energia em seu centro gráfico, em Tamboré, foi restabelecido mais tarde do que na capital. Muitos só receberam o jornal à tarde. Por volta de 17h uma senhora telefonou de Franca (SP), ainda à espera de seu exemplar.

Para Redação e Departamento Industrial, foi uma madrugada longa e de grande esforço para produzir a edição. Infelizmente, muita gente só viu o resultado tarde demais.


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