Folha de S. Paulo


Casca de banana

Ao mesmo tempo em que ocupa espaço crescente nas páginas da Folha, o noticiário das denúncias de corrupção na administração paulistana corre o risco de patinar em uma infinidade de relatos sobre o dinheiro cobrado pelo fiscal X para acobertar a irregularidade Y.

Não que esses depoimentos careçam de valor noticioso. Mas, caso se contente com eles, ou mesmo com suas conexões na Câmara Municipal, o jornal terá perdido de vista que a vocação dessa história é chegar acima disso.

A máfia, que nas primeiras reportagens era "dos fiscais", é na verdade da prefeitura.

A Folha já não ignora o assunto, como fazia até semanas atrás. Não haveria como. Mas falta ao jornal um foco mais preciso do que está em jogo na investigação.

A edição de terça-feira era o retrato perfeito dessa pulverização: três páginas de cardápio variado, 11 textos e nenhuma articulação entre eles.

Cansei de perguntar, na crítica interna que diariamente envio à Redação, por que não vem sendo usado o recurso de "amarrar" o noticiário do dia em um texto de abertura que ordene os desdobramentos relevantes e forneça a memória necessária para acompanhar o caso.

Em vão. Concluí que talvez não se trate apenas de desinteresse pelo leitor, mas de dificuldade para identificar o que é importante.

É sinal também de pouco entusiasmo. Outros veículos, de olho no mal-estar da população com esse estado de coisas, já partiram para a campanha, não raro personalizada.

Não deve ser esse o caminho da Folha. Mas vale lembrar a advertência de seu projeto editorial: "o tratamento distanciado (...) não pode servir de álibi para uma neutralidade acomodada".

Se o jornal está convencido e deveria estar de que a máfia da propina pode representar, para a cobertura jornalística da administração municipal, algo semelhante ao que foi o Collorgate no plano federal, então a edição tem de deixar isso claro para o leitor.

Atirando a esmo, a Folha chegou com um dia de atraso à informação mais relevante da semana que passou: o reconhecimento à polícia, feito por Roberto Rocha, de que sua empresa, a Enterpa, pagava propina à Regional da Penha.

Na mesma quarta-feira em que levou o "furo" do concorrente local, a Folha deu uma contribuição sua ao noticiário: a revelação de que o filho de Vicente Viscome, até aqui o vereador mais implicado nas denúncias, era funcionário "fantasma" da Companhia de Engenharia de Tráfego.

A diferença entre as duas notícias é reveladora do tipo de problema que a Folha vem enfrentando para avançar nessa investigação.

Não chega a ser irrelevante acrescentar um filho "fantasma" à lista já extensa de irregularidades pregada nas costas do vereador. Mas também não altera o rumo das coisas.

O depoimento do dono da empresa de coleta de lixo explícito como nada visto nas apurações do esquema PC colocou a história toda em um novo patamar, mais próximo do Executivo municipal.

Na quinta-feira começaram os trabalhos da CPI. E a Folha, que gosta de repetir que a comissão é um show, aparentemente teve sua visão ofuscada pelo espetáculo.

No dia seguinte, trouxe uma edição repleta de frases coloridas da depoente Tânia de Paula, algo como os "melhores momentos" e alguns de fato eram muito bons da namorada e parceira de Viscome.
O jornal desceu ao detalhe de registrar, em uma nota, que as respostas dela "continham erros gramaticais: pra mim fazer, pra mim pegar".

Enquanto isso, passou por entre as pernas da Folha mas não pelas do "Jornal do Brasil" e do "Estado" a informação de que a assessora mencionou, em seu depoimento, duas pessoas que, de acordo com ela, estariam um degrau acima na rede de corrupção da Regional da Penha: Silvio Rocha, que foi ligado a Paulo Maluf e ensaiou romper com ele no ano passado, e o coronel da reserva Ivan Márcio Gitahy, também apresentado como homem do ex-prefeito.

Como se vê, é tolice perder tempo com os deslizes gramaticais de Tânia de Paula, seja porque a Folha comete os seus, seja porque há coisas importantes à espera de atenção da reportagem.

Por mais folclórica que seja a dupla Viscome-Tânia, por mais estupefação que causem envelopes de dinheiro entregues a este ou aquele vereador, não é aí que termina a história.

Nenhum problema em que a cobertura seja extensa, desde que o jornal saiba diferenciar para si e para o leitor o essencial do acessório, e não fique sentado à espera do que lhe é servido pela tríade CPI-polícia-Ministério Público.

Faz parte do jogo, em um trabalho investigativo com tantas ramificações, avançar, recuar e, eventualmente, apostar em coisas que não vingam. Só não vale ficar escorregando em casca de banana.


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