Folha de S. Paulo


Resumos e referências

O texto jornalístico se alimenta, em boa medida, de outros textos jornalísticos. Em princípio, não há nada de errado nisso.

Desde que demarcados os limites da autoria, essa engrenagem de referências enriquece discussões e amplia o repertório de informações que o leitor recebe sobre determinado assunto.
O problema está em saber quais são os limites e como deixar claro onde termina a citação e começa a novidade.

A questão foi apresentada à ombudsman por um leitor, que relatou ter reconhecido, na coluna de Arnaldo Jabor publicada na Ilustrada em 10 de novembro, passagens de artigo que havia saído um mês antes no "Le Monde Diplomatique".

Os dois textos tratavam de uma sigla ainda pouco conhecida de quem não acompanha com assiduidade os cadernos de economia: MAI, "Multilateral Agreement on Investment", ou Acordo Multilateral de Investimento.

Negociado desde 1995 na OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), o MAI é alvo de resistências em diversos países (tantas que foi oficialmente colocado para hibernar).
Se aprovado, ele diminuiria drasticamente a capacidade dos governos para regular os movimentos do capital externo e impor limites aos interesses das grandes corporações.

Sobre esse e outros riscos representados pelo acordo falavam Jabor na Folha e Lori M. Wallach no "LMD" (o leitor recebeu o suplemento encartado no "The Guardian Weekly", do qual é assinante).
Comparei os textos. A primeira coisa a ser dita é que Jabor citou a fonte, com todas as letras, a certa altura de sua coluna: "muitas denúncias estão saindo na imprensa européia, como a de Lori M. Wallach no 'Manchester Guardian', que eu cito".

É um ponto importante, que descarta a caracterização de plágio e demonstra, da parte do articulista, atitude mais franca do que a detectada por uma leitora há alguns meses, quando Jabor publicou, com poucas alterações, um texto seu que já havia saído no jornal.

Mas não é o único ponto. "Jabor não apenas cita o artigo, como transcreve várias partes dele", apontou o leitor.
É verdade. A coluna tem introdução e conclusão próprias, sem correspondência no artigo de Wallach.
O "miolo", no entanto, é essencialmente um resumo não assumido do "LMD".

Cotejando os dois textos, concluí que 59% do material apresentado na Folha (os trechos sombreados no quadro ao lado), antes e depois da citação, é tradução literal ou aproximada da publicação estrangeira.

Até mesmo comparações usadas no original são repetidas sem indicação de autoria: "Isso não é ficção científica" ("This is not the plot of a science fiction novel").
Mais relevante do que o percentual, a meu ver, é o fato de que não há como saber, a partir de uma referência isolada no sétimo parágrafo, que a reprodução do artigo de Wallach é tão disseminada.
O questionamento do leitor foi levado, por intermédio da Secretaria de Redação, ao articulista. Ele não quis se manifestar sobre o assunto na coluna da ombudsman.

A "recortagem" é velha conhecida das Redações. Não é deslize exclusivo de Arnaldo Jabor. Imagino que já tenha sido percebida por muitos leitores, sob muitas assinaturas, não raro sem a citação que existiu neste caso.

A Internet, hoje instrumento de trabalho essencial para o jornalista, potencializou o risco, multiplicando dados e análises disponíveis.A abundância de recursos é, na essência, benéfica para quem escreve e para quem lê.

Mas amplia a necessidade de ser rigoroso na hora de esclarecer de onde veio o que está sendo publicado. A discussão sobre o crédito de informações nunca foi tão atual.
Não apenas porque essa democratização tem mão dupla, ou seja, eleva as chances de o leitor constatar que foi iludido.

Mas, principalmente, porque não se deve deixar dúvidas sobre quem escreveu o quê. Um texto que carrega assinatura não pode ser comparado a outro que traz no alto um impessoal "da Redação", ou "das agências internacionais".

Longe de adotar um tom persecutório, o professor universitário que me procurou buscava entender como funciona o jornal.
"Talvez esse procedimento seja aceitável no jornalismo, mas, em se tratando de publicações científicas, que conheço, não é nada aceitável resumir um artigo de outrem, mesmo citando o autor em alguma parte, e publicar o resultado como sendo uma nova contribuição para a discussão."

A resposta é que esse procedimento não é aceitável no jornalismo.
O curioso nessa história toda é que, motivada pela correspondência do leitor, acabei tomando conhecimento de um assunto sobre o qual nada sabia e que se revelou para mim extremamente interessante. Parte dessa descoberta devo a Jabor.

Pesquisando nos arquivos da Folha, localizei em setembro do ano passado a primeira reportagem sobre o MAI, feita por Clóvis Rossi. Ali estavam descritas as características do pretendido acordo e as preocupações da diplomacia brasileira diante de sua abrangência e rigidez.

Desde então, o tratado visitou com certa frequência as páginas do jornal, especialmente em artigos (a economista Maria da Conceição Tavares respondeu pelo maior número deles).
Até a Igreja Católica manifestou, em reunião dos bispos brasileiros em abril passado, seus temores em relação ao MAI, "que afirma a precedência do capitalismo mundial contra o interesse público e a soberania dos povos", segundo d. Luciano Mendes de Almeida.

Diante de tantas referências, senti pena de não ter atentado antes para o assunto. Desconfio, no entanto, de que o mesmo pode ter acontecido a muitos leitores, pelo simples motivo de que o MAI esteve, até agora, praticamente restrito aos nichos mais especializados da cobertura econômica.

Esse foi o mérito da coluna de Jabor. Olhar o tema sob o prisma cultural, chamando a atenção para os "sobretons orwellianos" do acordo, "que farão gozar qualquer adepto da fobia antiimperialista".
O problema é que o procedimento, para usar o termo do professor, não foi o correto.

Não tenho dúvidas, até por suas observações iniciais, de que o articulista leu sobre o acordo bem mais do que o artigo de Lori Wallach. Mas o fato é que apresentou ao leitor, majoritariamente, texto dessa fonte como se fosse seu. Esta não pode ser apenas uma discussão formal sobre a colocação de aspas (que não houve) ou sobre o álibi proporcionado por uma citação.

Esta discussão diz respeito ao direito do leitor de saber, e à obrigação de quem escreve de ser transparente.


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