Folha de S. Paulo


Honestos por definição

Toda pessoa é inocente até prova em contrário. Está escrito na Constituição. Mas, no caso do grampo no BNDES, o governo tenta fazer valer um princípio diferente.

De acordo com ele, determinadas pessoas seriam inocentes por definição. Do outro lado estariam as demais, e, entre estas, um subgrupo que dispensa até mesmo o benefício da dúvida.

Tome-se como exemplo a entrevista que a Folha publicou na quarta-feira com André Lara Resende, principal interlocutor do ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros nos telefonemas gravados.
Na opinião do presidente do BNDES, "a imprensa alimenta a dúvida, a incerteza, coloca bandidos e mocinhos no mesmo nível" (as aspas, é importante esclarecer, correspondem ao relato feito pelo jornal do discurso de Lara Resende; a entrevista não foi gravada e nem editada na forma de perguntas e respostas).

Segundo a Folha, ele "explicou que a imprensa, na tentativa de mostrar imparcialidade e isenção, acaba dando o mesmo espaço para coisas verdadeiras e coisas inverídicas, ou para personagens que merecem crédito e para outros que não merecem".

Por fim, o leitor ficou sabendo que Lara Resende "vem amadurecendo a idéia de escrever um ensaio sobre a vida pública, a vida privada e a mídia", e que concluiu ser este "o melhor momento".
Ou seja, podemos não ver respondidas as dúvidas que pairam sobre a privatização da Telebrás. Em contrapartida, o conhecido debate a respeito dos "excessos da mídia" ganhará nova contribuição.
Há dois problemas nessa divisão do mundo entre "personagens que merecem crédito e outros que não merecem". O primeiro é que ela embute a concepção de que determinados homens públicos, de tão íntegros, estariam isentos da obrigação de prestar contas de seus atos e palavras.

Essa idéia costuma vir acoplada a outra, ouvida com frequência nos últimos dias: o processo de venda de uma estatal do porte da Telebrás seria complicado demais para "qualquer um" entender.
Grampo, não custa repetir, é crime.

Sua autoria tem de ser desvendada, e os responsáveis, punidos. Isso não significa que os envolvidos possam deixar sem explicação as suspeitas levantadas pelas gravações.
O segundo problema consiste em estabelecer quem escolhe os integrantes do grupo dos que "merecem crédito" e dos que "não merecem".

O governo? A imprensa? O correto seria que os jornais oferecessem informação exata e interpretação de qualidade, deixando ao leitor a possibilidade de decidir por si mesmo.
É compreensível que o presidente do BNDES, enredado em uma situação embaraçosa, tenha recorrido à imagem de um confronto entre mocinhos e bandidos para apresentar sua visão do caso.
Menos defensável é a atitude da imprensa, que aderiu na primeira hora à caricatura.

Até o fim-de-semana passado, enquanto não havia gravações publicadas, os jornalistas pareciam satisfeitos com o relato sobre seu conteúdo que Mendonça de Barros tomou a iniciativa de fazer.
Entretidos com a história de que Lara Resende falava francês ao telefone para driblar o grampo, pouca atenção dispensaram ao reconhecimento, por parte do ministro das Comunicações, de que havia orientado a formação do consórcio que disputou com o grupo Votorantim e venceu o leilão da Vale do Rio Doce.
A justificativa de que se tratou de manobra para garantir competitividade foi absorvida sem maior discussão.
Mesmo depois de reveladas as primeiras fitas em "Veja", o clima não mudou de maneira substancial.

Predominou a análise de que a dupla, embora tenha jogado pesadamente a favor do amigo Pérsio Arida (Banco Opportunity) no leilão da Tele Norte Leste, o fez "com a melhor das intenções". Nada havia que "justificasse demissões".

Com a divulgação de novos diálogos na "Carta Capital" de teor um pouco mais corrosivo e o depoimento de Mendonça de Barros na quinta-feira ao Senado, a situação começou a se deteriorar.
Abro parêntese para notar que o grampo vem sendo um caso das revistas.

Surgiu na "Época" _sem fitas e com o diagnóstico de que o ministro não havia "se intimidado" com elas.
Ganhou força em "Veja" e deslanchou na "Carta Capital".

Os jornais seguem a reboque. Até ontem, a Folha não havia conseguido fitas entre as tantas que existiriam na praça e nem avançado na apuração da origem de um grampo que conseguiu monitorar uma privatização de US$ 22 bilhões.

Tampouco havia se dedicado em profundidade a um debate que sempre foi caro ao jornal: o da promiscuidade entre os setores público e privado, suscitado não apenas pelo relacionamento entre os personagens das conversas, como também por suas entradas e saídas do governo.

Parêntese fechado, lembro que debruçar-se sobre essas questões não equivale a tratar "todo mundo como farinha do mesmo saco", advertência feita pelo presidente do BNDES na referida entrevista.
A biografia dos personagens da notícia pesa no tratamento que recebem. É correto que seja assim. Mas esta não pode ser apenas uma discussão sobre nomes. O centro dela deve ser a forma de administrar o que é público.

Críticos do rumo tomado pelo episódio alegam que ele envolve enorme disputa política, e que a imprensa faz o jogo dos interessados _sejam eles os descontentes com os resultados da privatização, com o programa como um todo ou com a escolha de Mendonça de Barros para o futuro Ministério da Produção.

De novo, é algo que não pode servir de argumento para o abandono do caso. Melhor fará o jornal se tornar a disputa transparente para o leitor.
Dos diálogos revelados, há um sobre o qual pouco se falou ao longo da semana.

"A imprensa está muito favorável, com editoriais", disse o ministro ao presidente da República, a respeito do leilão da Telebrás, em um dos trechos publicados em "Veja".
"Está demais, né? Estão exagerando até", respondeu FHC.

Não é difícil entender o silêncio da imprensa diante da troça do presidente.

Faz lembrar um daqueles almoços familiares em que uma tia dispara, do nada, um comentário tão desagradável quanto verdadeiro. Diante do constrangimento geral, só resta mudar de assunto e pedir para alguém passar o macarrão.


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