Folha de S. Paulo


Dívida e discórdia

As páginas do jornal abrigaram nos últimos dias um embate duro, hermético e, até agora, sem vencedor. De um lado, Mailson da Nóbrega. Do outro, os editorialistas da Folha. A polêmica começou no espaço que o ex-ministro da Fazenda ocupa às sextas-feiras em Dinheiro.

Em seu artigo de 16 de outubro, ele escreveu que a Folha cometera um erro monumental'' ao informar que a dívida do Estado brasileiro foi multiplicada por cinco desde o lançamento do Plano Real.
O cálculo constava do editorial Tempo Esgotado, publicado na Primeira Página em 24 de setembro, um dia depois do discurso em que o presidente Fernando Henrique Cardoso, às vésperas da eleição, tratou pela primeira vez da crise econômica.

A resposta da Folha veio no dia seguinte ao artigo, em forma de novo editorial, maliciosamente intitulado "Dívida Monumental".
O novo texto reafirmava o diagnóstico anterior sobre as contas públicas e situava na contracorrente dessa percepção de gravidade economistas alinhados com o governo, citando Mailson como exemplo. Não se podem negar os dados, afirmou o jornal.

O capítulo seguinte foi uma carta de Mailson registrada dia 21 no Painel do Leitor. Nela, o ex-ministro acusava o jornal de ter usado a técnica stalinista de desmoralizar o crítico, em vez de apresentar argumentos contra sua análise, segundo a qual a dívida crescera 86,8% desde 94.

No pé, nota da Redação voltava a identificar o ex-ministro com a política oficial de "relativizar o problema do crescimento do estoque de títulos públicos federais em circulação no mercado".
Mailson não se conformou. Nova carta saiu na quarta-feira passada, seguida de outra nota da Redação. Insisto que a Folha errou, escreveu o articulista. Dessa vez ele encaminhou cópia da manifestação à ombudsman.

Não tenho a pretensão de discorrer sobre os meandros do déficit público com mais propriedade do que o ex-ministro ou os editorialistas.
Mas à ombudsman interessa o caso de alguém que se considera injustiçado pelo jornal. Se foi ou não, é questão que merece ser investigada.
Consultado por mim na quinta-feira, o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, também ele colunista da Folha, recomendou que fossem distinguidos d
ois aspectos: o técnico e o de avaliação.
Quanto ao primeiro, ressaltou a importância de esclarecer com que conceito de endividamento trabalharam o editorial e o artigo de Mailson.
Enquanto a Folha tomou por base a dívida mobiliária (em títulos) federal, o ex-ministro referiu-se à dívida líquida do setor público como um todo (critério no qual descontam-se, da dívida bruta, os ativos do Estado, como suas reservas, por exemplo).
É legítima a opção feita pelo jornal? Sim, avalia Giannetti. Mas, segundo ele, Mailson tem um ponto. A dívida líquida é um conceito mais relevante.
Giannetti acrescenta que seria necessário, para o correto entendimento do texto, explicitar o conceito usado.

A recomendação, na verdade, serve para reportagens, editoriais e colunas de opinião. Vai ao encontro da preocupação com didatismo que a Folha cultiva, mas nem sempre consegue executar.
O segundo aspecto a discutir é a avaliação que se faz do problema do déficit.

Há uma linha de pensamento econômico, próxima do governo e refletida no artigo, segundo a qual o estoque da dívida é relativamente administrável se comparado ao tamanho da economia brasileira.
Outra linha, expressa no editorial e endossada por boa parte dos economistas, entre eles Giannetti, considera alarmante, até mais do que o tamanho da dívida, o ritmo explosivo de seu crescimento.
Uma discussão como a travada entre a Folha e seu colaborador deveria servir para esclarecer o leitor, especialmente quando envolve assunto tão árido e, como o jornal não se cansa de lembrar, essencial para entender a situação do país.

O foco deveria estar no leitor. A divergência, em vez de sepultada com notas curtas, que apenas sustentam a informação publicada e desmerecem o crítico, poderia ser usada para tornar o tema compreensível para um número maior de leitores.

Infelizmente, não foi o que aconteceu até agora. Se há um ponto em que não vejo como discordar de Mailson é quando ele diz que, na primeira resposta a seu artigo, a Folha limitou-se a chamá-lo de governista. Que seja. Ou bem o jornal ignora a crítica, ou examina sua argumentação.

A partir daí, o que se viu foi bate-boca. A nota da Redação que acompanhou a segunda carta chegou a esboçar uma explicação do jornal sobre a escolha que fez, mas a tentativa foi limitada pelo pouco espaço disponível na
página 3.

Ampliar o debate e traduzir para o leigo sua importância é a única forma de melhorar o saldo desse tipo de polêmica.
Se não for assim, os entendidos saberão exatamente o que pensam as duas partes envolvidas.

Para a maioria dos leitores, restará apenas uma troca de farpas em grego que, ainda por cima, contribui para reduzir o disputado território do "Painel do Leitor".


Endereço da página: