Folha de S. Paulo


Contorcionismo verbal

Nas últimas semanas, quando não estão entretidos com pesquisas eleitorais, os jornais vêm tentando antever o que o governo federal fará com a economia, e em que momento.
Quanto à primeira pergunta, a Folha, como os concorrentes, segue tateando.

Seu feito mais relevante, até agora, foi ter antecipado a intenção do governo de não apenas manter a CPMF como elevar a alíquota do imposto.
Quanto à segunda questão quando virão as medidas, o jornal se atrapalhou.

Na edição do dia 8, ao noticiar o primeiro pronunciamento do presidente da República depois de reeleito, a Folha publicou a seguinte manchete: "FHC anuncia ajuste antes dos 2º turno''.
Logo abaixo, um título de tamanho menor cravava que a divulgação aconteceria "no dia 20, antevéspera do fim da campanha''. A data passou. O pacote ainda não veio.

Em resposta, a manchete da última terça-feira reviu o prognóstico do jornal, avisando que os "detalhes'' sairiam depois das eleições. O texto lembrava que as medidas "haviam sido anunciadas'' para o dia 20, dando a entender que o presidente recuara.

Em primeiro lugar, à exceção de promessas de superávit nas contas públicas para os próximos anos, todo o pacote, e não apenas seus "detalhes'', será conhecido só depois do fechamento das urnas.
Na verdade, essa opção sempre fez mais sentido, do ponto de vista do governo, do que arriscar a sorte de aliados nos Estados com medidas impopulares antes da votação de hoje.

Em segundo lugar, basta conferir a íntegra do discurso de FHC para perceber que as coisas não são bem como a Folha pintou.
Sua primeira frase sobre o assunto foi:

"Pedi à área econômica que até dia 20 de outubro nos apresente um programa de ajuste fiscal''. O plural é claramente majestático.
Adiante, disse: "Isso (a necessidade do ajuste) não significa que, do dia para a noite, as pessoas acordem e levem um susto. Isso significa que, com esse programa, que vai ser apresentado até o dia 20, o Brasil todo vai discuti-lo''.

Com base no último trecho dessa declaração, a Secretaria de Redação contestou minha crítica interna sobre o episódio. Entende que, para que o país pudesse debater as medidas, elas teriam de ser mostradas não apenas ao presidente.

De fato, há uma dose de ambiguidade na sentença e FHC, mas não houve comprometimento com um anúncio ao público na referida data.
À primeira vista, a análise desse discurso e do uso que a Folha fez dele nas duas manchetes pode parecer detalhe.

Afinal, mais importante do que acertar a data da divulgação será oferecer ao leitor interpretação de qualidade sobre o alcance das diversas medidas _as quais, tudo indica, devem sair nesta semana.
Mas o episódio é interessante por exemplificar bem a liberdade excessiva com que o jornal trata as palavras dos outros sempre que é necessário justificar as suas.

A Folha fez uma previsão (pacote antes do segundo turno) e estreitou sua "margem de erro'' ao fixar a data. Não deu certo.

A falha em si não me parece grave, até porque é possível agarrar-se à construção confusa da frase do presidente.
No entanto, se usa essa ambiguidade em sua defesa, o jornal não pode em seguida descartá-la e decretar, para livrar a cara de uma manchete que se revelou furada, que FHC mudou de idéia.
A edição da última quinta-feira ofereceu outro exemplo de contorcionismo com o discurso alheio.

"Covas já fala em ganhar de goleada'', afirmava a reportagem em que o candidato comentava o resultado da pesquisa Datafolha apontando sua virada sobre Paulo Maluf.
Agora confira a declaração do tucano:

"Não basta ganhar. É preciso que a gente ganhe de goleada''.
Fica claro que não é a mesma coisa.

A frase de Covas é um pedido de votos. A do jornal tem um tom de "já ganhou'' inexistente no original.
Nem mesmo boas reportagens não estão imunes ao vício de dar anabolizante às palavras.

No domingo passado, o repórter Daniel Castro marcou um gol ao revelar, no TV Folha, o esquema de contratação de pobres coitados para "interpretar'' dramas forjados no programa de Ratinho.
Na edição de quarta-feira, a primeira repercussão da história veio com o título: "Ministério Público sugere cassação do SBT''.
Ministério Público, no caso, vem a ser um promotor que está se tornando conhecido por sua cruzada contra o apresentador.

No texto, Clilton Guimarães dos Santos dizia que as medidas contra a emissora poderiam ser "multa e até a revisão da concessão''.
Como é muito improvável que esse cenário extremo se concretize, o jornal poderia ter poupado o leitor do sensacionalismo do título. O enunciado procura inflar artificialmente um caso que não precisa disso.

No calendário do pacote, o contorcionismo verbal foi usado para sustentar uma interpretação possível, mas bastante particular do jornal.
Na goleada de Covas, houve distorção pura e simples.

As ameaças do promotor à emissora que exibe as farsas de Ratinho foram tomadas além de seu verdadeiro peso.
Os três casos têm em comum a falta de apego à exatidão, sem a qual o jornal compromete sua credibilidade.
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Na semana que passou, as pesquisas eleitorais permaneceram no topo da lista de assuntos que levaram o leitor a procurar a ombudsman.
Com tudo o que aconteceu em São Paulo a virada, o escorregão do Ibope, o debate da noite de sexta-feira, achei mais prudente esperar pela apuração dos votos para voltar ao tema.
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Gostaria de estar enganada, mas tudo indica que o caso do hotel do ministro das Comunicações será sepultado tal como previsto aqui há uma semana: a Folha acusou, Luiz Carlos Mendonça de Barros desmentiu, e o leitor não saberá quem tem razão. Ficou tudo por isso mesmo.


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