Folha de S. Paulo


Leituras da crise

Na semana que passou, dois leitores procuraram a ombudsman com reclamações diferentes a respeito do noticiário sobre o agravamento da situação econômica do país.
O primeiro deles telefonou na quinta-feira, insatisfeito com a manchete da Folha "Medidas não seguram saída de dólar". No entender do leitor, o destaque dado à fuga da moeda norte-americana maciça, apesar do anúncio de corte de gastos que o governo fizera dois dias antes_ "só prejudica o Brasil".

Argumentei que o problema existe e é sério. Não foi inventado pelo jornal. O leitor rejeitou minha ponderação, acrescentando que a Folha só publica "notícias destrutivas".

Depois recuou dessa última afirmação, lembrado de que, no mesmo dia, um encarte especial dava ampla divulgação à melhora de desempenho do Brasil no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU.
Mas não houve acordo no que diz respeito à cobertura econômica. Pelo menos, a conversa terminou de forma amistosa.

O leitor não está sozinho em seu protesto. Não raro, especialmente em momentos como o atual, a Folha é chamada de catastrofista.
Esse risco existe, e tem de ser evitado com a responsabilidade e discernimento que a importância do assunto exige. Mas é dever do jornal oferecer ao leitor os instrumentos necessários para dimensionar a crise.

As manchetes recentes da Folha causam justificada apreensão. Mas a ombudsman acredita que estão em pior situação leitores de veículos que preferem escamotear dificuldades na esperança de que elas evaporem.

O segundo leitor telefonou na sexta-feira, com preocupação oposta. "Quero saber por que a Folha não avisou antes que a situação do país era tão séria", cobrou.
Também com ele não houve acordo.

Procurei lembrá-lo de discussões veiculadas no jornal, especialmente por alguns de seus colunistas. Para o leitor, elas foram "insuficientes".
O acompanhamento diário e extensivo da Folha me faz saber que os alertas existiram, mas a reclamação é bastante compreensível.

O leitor não-especializado ou apenas desobrigado de esquadrinhar o jornal pode ter a sensação de que ficaram lhe devendo informação no meio do caminho.
Para discutir o problema apresentado pelo leitor, a ombudsman procurou quatro jornalistas da área econômica.

Além de avaliar a questão, eles falaram sobre governo, mercado e informação independente. Apresento a seguir o resumo de seus depoimentos.
Cláudia Safatle, diretora da Sucursal de Brasília do Jornal do Brasil:

"Desde 1994, quem acompanhava o Plano Real e havia acompanhado outros planos apontava as fragilidades decorrentes da excessiva dependência do capital externo.
Entre os economistas da oposição, de um lado havia o Delfim Netto, do outro, a Maria Conceição Tavares. No entanto, para muita gente podia parecer apenas jogo político.
O risco de a festa acabar sempre foi aventado, mas talvez as pessoas só sintam quando ela acaba mesmo. A crise bate no leitor quando explodem os juros, quando aumenta o desemprego.
A informação oficial estava ali o tempo todo dizendo que o caminho era bom _e, em certa medida, era mesmo.

O jornalista também precisa ter cautela com as fontes do mercado. Sempre digo que só falo com elas depois das 19h. Por outro lado, sem essas fontes você jamais vai saber o que pensa a iniciativa privada."

Míriam Leitão, colunista de "O Globo" e comentarista da Rede Globo:
"É complicado alertar o leitor. A economia não é uma ciência exata. O público tende a achar que o jornalista tem um manual de sobrevivência para os momentos de crise.
O jornalista não pode esconder informações, nem torcer pelo pior para que prognósticos se confirmem.

Persigo esse ponto de equilíbrio entre esclarecer o leitor e, ao mesmo tempo, não ser irresponsável e não fazer o jogo do mercado financeiro.
Não podemos ser ingênuos. Os bancos têm suas posições, fazem suas apostas.

O pessimismo deles é movido a dinheiro. Ao conversar com o mercado, a única saída é ouvir muita gente, estudar, ler e, nos momentos de pânico, conservar a cabeça fria.
Com fontes oficiais é preciso cuidado, mas é mais fácil saber o que querem _mostrar sempre que as coisas vão bem.

Celso Pinto, colunista e membro do Conselho Editorial da Folha:
"Nos últimos anos, a imprensa veiculou análises relevantes sobre os riscos embutidos no atual modelo de política econômica. Em 1997, já havia no mercado a percepção de que o ano eleitoral seria particularmente delicado para o Brasil.

Embora não tenha sido generalizada, essa discussão esteve disponível. Não foi por falta de debate que se chegou à atual situação.
Ao mesmo tempo, é fácil dizer, quando estoura o problema, que o desfecho era óbvio.

Nos primeiros estágios da crise, o governo subestimou seu alcance, e parte da imprensa se deixou levar por esse diagnóstico.
Há dois riscos simétricos e opostos. O primeiro, ser seduzido pelo que diz o governo. O segundo, pelo que diz o mercado, que exagera informações e reações. São distorções de natureza idêntica.
Ninguém é dono da verdade _governo, mercado ou jornalistas.

"Luís Nassif, colunista e membro do Conselho Editorial da Folha:
"Houve alertas por parte de jornalistas independentes e economistas da oposição. De forma geral, a imprensa não informou adequadamente.
Em 1995, fiz uma série de artigos descrevendo um quadro muito semelhante ao atual. Fui indiretamente acusado por colegas de profissão de ser lobista da Fiesp.
Quanto à questão das fontes, não a vejo como uma oposição entre governo e os que estão fora dele, mas sim entre uma visão apenas financeira da economia e outra, mais abrangente.
Hoje, há uma ditadura da análise financeira na interpretação da economia. Nove entre dez fontes são profissionais que trabalham para bancos de negócios. Suas análises influenciam mercados, e eles acabam prisioneiros das posições dos 'traders'.

Não têm nenhuma independência para formular um diagnóstico da realidade.
O outro vício da imprensa é a excessiva concentração na análise macroeconômica, que desconsidera o que existe por baixo desses indicadores."


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