Folha de S. Paulo


Justiceiros do papel

Às vezes, os deslizes acontecem nas grandes coberturas. Outras, em histórias que nem chegam à Primeira Página.

O dano não é necessariamente menor no segundo caso. Na edição de segunda-feira, entre a demissão do gabinete russo e os resultados do futebol, a Folha registrou a morte de um rapaz de 22 anos, arremessado de sua Kawasaki Ninja depois de uma briga de trânsito em São Paulo.

Na madrugada de domingo, Franco Giobbi e um amigo dirigiam suas motocicletas na av. Sumaré.
Teriam sido fechados e, após discussão, perseguidos por um Tempra. Interceptado pelo carro, o estudante foi lançado da moto. Teve morte instantânea.

O motorista do Tempra, Crauzemberg Casotti Campos, 42, está preso. Foi indiciado sob acusação de homicídio doloso (intencional). Sua noiva, que ocupava o banco do acompanhante, sofreu ferimentos no rosto e nos braços. Era correta a reportagem de segunda-feira.
Tomava com a devida cautela os dados do boletim de ocorrência. Trazia a versão do amigo de Giobbi e também a de Campos, que falou à Folha na delegacia.

Segundo o operador de câmbio, aluno do último ano de faculdade de comércio exterior, os jovens teriam insultado sua noiva e o agredido. Ele alega ter perdido o controle do carro.
O caso caminhava para um acompanhamento discreto. Desconfio que nem teria saído em abertura de página se a vítima não pertencesse a uma família tradicional.

É terrível que seja assim, mas episódios de violência no trânsito, mesmo aqueles com desfecho trágico, não causam mais grande espanto na cidade de São Paulo.

Na quarta-feira, no entanto, a história voltou a ganhar destaque. Foi tema da coluna que Barbara Gancia assina duas vezes por semana na página 2 do terceiro caderno.
Em tom emocionado, a jornalista contou que conhecia Franco Giobbi desde o nascimento. Mencionou as dificuldades do garoto por ter perdido o pai cedo, e disse que nos últimos tempos ele mostrava estar dando a volta por cima. Em seguida, com base no relato do rapaz da outra moto, descreveu os eventos da madrugada de domingo.

Tudo o que na reportagem de segunda-feira era hipótese, em seu texto tornou-se certeza. ''Faço questão de repetir para que fique bem marcado na mente do leitor'', escreveu a jornalista depois de fornecer, pela terceira vez, o nome completo do motorista do Tempra.

Embora ainda não tenha sido divulgado o resultado dos exames toxicológicos, a coluna afirma que Campos estava completamente bêbado. Os ombudsmans da Folha não costumam tratar da opinião dos colunistas do jornal. Cada um tem a sua.

Mas, neste caso, a questão é outra. O texto de Barbara Gancia exala envolvimento pessoal no caso. Quando se trata de colunistas, isso não é, em princípio, errado. Conta a favor dela não ter procurado esconder esse envolvimento, pelo contrário.

O problema é que não foi comentário o artigo levado ao leitor. Apresentou-se como fato consumado o que, até o momento, é menos do que isso. É possível compreender a jornalista.
Uma tragédia como a agora enfrentada pelos familiares de Franco Giobbi traz à tona os sentimentos mais extremos. Nada parece capaz de conter a revolta. Mas não é possível aceitar que o jornal se antecipe à Justiça e alimente um sentimento de condenação prévia.

Foi precisamente o que aconteceu neste caso. No mesmo dia da publicação da coluna, recebi cópia de carta endereçada à Barbara Gancia por uma leitora que também manifestava envolvimento pessoal na história. Ela mora com os pais na mesma rua em que Crauzemberg vive com a mãe, na Freguesia do Ó.

As duas famílias se conhecem há muitos anos. A leitora disse acompanhar e admirar trabalho de Barbara Gancia. Não procurou afirmar a inocência de Campos, mas protestou contra sua "execração pública''.

''Uma mesma história, dependendo de quem a conta, pode ter mais de uma versão. Antes de aceitarmos uma delas como definitiva, faz-se necessária a apuração de todas as circunstâncias que a envolveram'', escreveu.

A ombudsman tentou ouvir Barbara Gancia, mas a colunista está nos Estados Unidos e não pôde ser localizada. Foi procurado também o advogado de Campos.

Em conversa telefônica, ele pediu para não ser identificado. Disse que não sabe se permanecerá no caso. Diante do que já foi feito, a Folha deveria redobrar seus cuidados ao tratar do assunto.
O "Jornal da Tarde", por exemplo, sentenciou em título na quinta-feira que a noiva ''incriminara'' Campos ao depor. A leitura do texto desautorizava o enunciado.

É imprescindível garantir a publicação dos argumentos de ambos os lados e evitar novos pré-julgamentos. É o que determinam a lei, o ''Manual da Redação'' e as noções mais básicas de isenção. Se não for assim, viramos todos justiceiros do papel.

Há uma semana, a editora do Folhainvest procurou mostrar que seriam infundadas as preocupações da ombudsman com o tipo de jornalismo praticado naquele caderno.

O noticiário dos últimos dias demonstra de maneira cristalina que não pode haver espaço, em uma publicação séria, para o tratamento deslumbrado das aplicações em Bolsas de Valores.
Assim, é desnecessário tomar tempo do leitor passando meus argumentos em revista. Em confronto com o didatismo que a Folha prega e busca aperfeiçoar, a editora não viu problema no destaque incipiente que vinha sendo dado aos riscos embutidos nos investimentos recomendados, porque ''não podemos subestimar a capacidade de discernimento do leitor''.

Diante de tal filosofia, é curioso notar que, na última segunda-feira, o Folhainvest surgiu carregado de expressões como ''cuidado'' e ''cautela'' em seus títulos, até mesmo com alguma redundância, em flagrante contraste com o tom festivo das primeiras edições.

Não é o bastante. Para um caderno que pretende ser de serviço, o Folhainvest ainda está excessivamente atrelado a um jornalismo de declarações. Mas já é alguma coisa.


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