Folha de S. Paulo


Fim de festa

Depois de escorregar no ufanismo que tomou conta da imprensa antes do desastre na final da Copa, a Folha decidiu fazer jornalismo e se deu bem.
Na edição de quinta-feira, trouxe contribuição decisiva para esclarecer o que de fato aconteceu com Ronaldinho, 21, nas horas que antecederam a derrota da seleção brasileira diante da França.
Em resumo, a investigação do repórter José Henrique Mariante revelou que:

a) o jogador não teve convulsão, nem outro tipo de distúrbio de origem neurológica, mas sim uma crise nervosa;
b) o atacante já demonstrava alterações de comportamento havia alguns dias
c) o quadro de sintomas apresentado por ele naquela tarde alarmou seus companheiros e dividiu o grupo entre os que defendiam sua presença em campo e os que pediam sua substituição;
d) as duas facções se enfrentaram na concentração e depois no estádio, pouco antes do jogo, quando o técnico Zagallo voltou atrás na escalação de Edmundo e anunciou que Ronaldinho jogaria.
Assim o Brasil entrou em campo. A equipe anfitriã se mostrou bem menos desprezível, em talento e apetite, do que nossa cegueira triunfalista havia previsto.
Entre os leitores que comentaram o desfecho da Copa, a maioria elogiou o empenho da Folha em elucidar o episódio. Mas houve também quem pedisse ao jornal que parasse, ''pelo amor de Deus'', de falar em Ronaldinho.

Um leitor do segundo grupo considerou que a Folha errou ao colocar o problema com o jogador no centro da discussão. Para ele, isso obliterou 'à realidade de que teríamos perdido de qualquer jeito''.
Ponderei que é tarefa do jornal investigar um caso de enorme repercussão, no qual os envolvidos se portaram sem nenhuma transparência.
O leitor não mudou de idéia. Nem eu.

Mas, descontada sua previsão de resultado, exercício que a esta altura me parece ocioso, penso que ele toca em um ponto interessante.
De fato, apesar do reconhecimento posterior das fragilidades da seleção, a cobertura ainda transmite a impressão de que o incidente com Ronaldinho é o único responsável pelo 3 a 0 dos franceses.
Talvez isso ajude a explicar a passividade com que a imprensa reproduziu sucessivas versões oficiais nos primeiros dias após o fiasco na França.

Chama minha atenção o fato de que o furo da Folha não foi do tipo mirabolante, produto de expedientes heterodoxos, mas sim uma lição de casa muito bem feita.
O jornalista repórter de automobilismo que durante a Copa acompanhou outras seleções resgatou a história colhendo depoimentos de uma série de testemunhas e cruzando o material obtido.
De certa maneira, isso poderia ter sido feito por quem quer que estivesse realmente interessado em descobrir o que se passou no domingo.

Acho, no entanto, que parte da mídia repetiu o bordão ''o que aconteceu com Ronaldinho'' menos por disposição de esclarecer alguma coisa do que para alimentar a perplexidade do público _e a sua.
É mais confortável dar combustível a teses estapafúrdias epilepsia, envenenamento, ''venda'' do resultado do que reconhecer, diante do leitor/espectador, que participamos de uma fantasia coletiva em que os defeitos da seleção e os méritos alheios foram igualmente menosprezados.
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Se diz que Ronaldinho 'àmarelou'', a imprensa desrespeita o jogador da mesma forma que o lateral Roberto Carlos, o primeiro a definir dessa maneira o que aconteceu a seu colega de quarto.
Igualmente equivocado é tratá-lo como vítima da mídia, discurso em voga. A mesma Rede Globo que contratou a namorada do atleta para servir de dublê de repórter na cobertura do Mundial agora pede respeito à privacidade a Ronaldinho. É ingênuo retirar do melhor jogador do mundo as escolhas que ele faz. Não dá para querer preservar da curiosidade pública um romance que já foi usado para vender refrigerante.
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Quem acompanha os jornais, por gosto ou ofício, assistiu a um espetáculo único na semana que passou.
A imprensa esportiva, que já havia mudado seu discurso uma vez para se adequar às vitórias sobre Dinamarca e Holanda e antecipar a conquista final, trocou bruscamente de tom quando o que anunciara não se confirmou.

A Folha não escapou do fenômeno.

Antes ''iluminado'', Zagallo voltou a ser ''teimoso'' e ''ultrapassado''. As qualidades do capitão Dunga, referência obrigatória ao longo do torneio, desapareceram do noticiário. E ressurgiram as críticas à CBF, adormecidas na reta final da campanha pelo penta.

Seria apenas cômico, se não fosse também indicador de total falta de coerência e desrespeito à inteligência do leitor.
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Um leitor critica a ombudsman por ter escrito, no domingo passado, que o caderno Copa 98 trouxe cobertura completa dos eventos do Mundial.

Ele não mora em São Paulo. Por essa razão, aos domingos seu exemplar registrava o resultado apenas da primeira partida do sábado (menos no fim-de-semana em que houve Brasil x Chile à tarde).
O leitor argumenta que não pode considerar completo um produto com essa limitação.

Tem toda a razão em reclamar de minha desatenção, pela qual peço desculpas.

Embora o horário de fechamento não seja determinado pela Redação, e sim por exigências industriais e de distribuição, o leitor não tem por que se considerar satisfeito.


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