Folha de S. Paulo


Dane-se o outro lado

"Quando uma informação é ofensiva a uma pessoa ou entidade, ouça o outro lado e publique as duas versões com destaque proporcional'', diz o "Manual da Redação''.
Martelada diariamente sobre seus profissionais, a regra também é invocada toda vez que a Folha quer mostrar equilíbrio diante de questões polêmicas. Na prática, porém, o princípio nem sempre é respeitado.

Na segunda-feira, a Ilustrada trouxe reportagem sobre o lançamento de biografia do guerrilheiro Carlos Marighella, morto pela repressão em 1969. O material incluía trechos da entrevista concedida por Emiliano José, o autor do livro.

No penúltimo deles, intitulado "A queda'', está dito o seguinte: "Ninguém duvida de que Marighella caiu devido aos padres dominicanos, que foram torturadíssimos. Havia a suspeita de que Paulo de Tarso Venceslau houvesse falado, na tortura, da ligação de Marighella com os dominicanos. Paulo deu 20 entrevistas nas quais detalha sua participação. Mas foi o testemunho de Alípio Freire, que cuidava das feridas de Paulo na prisão, que mudou essa versão. Alípio ouviu de Paulo: "Abri o esquema dos padres'.''

Participante da luta armada contra o movimento militar, o economista Paulo de Tarso Venceslau ganhou o noticiário há pouco menos de um ano, quando veio a público dizer que existia, em prefeituras administradas pelo PT, um esquema de favorecimento à empresa Cpem, de um amigo de Luiz Inácio Lula da Silva.

O partido rejeitou as acusações e, recentemente, expulsou Venceslau de seus quadros.

Em "Carlos Marighella - O Inimigo Número Um da Ditadura'', Emiliano José conclui que, sob tortura, Venceslau teria dado informações sobre o "esquema dos padres'', que, uma vez descoberto, teria levado à emboscada em que morreu o fundador da ALN (Aliança Libertadora Nacional).

Sem cerimônia, a Folha publicou essa versão da história como se fosse a única. Venceslau não teve a oportunidade de oferecer a sua.

Na crítica interna encaminhada diariamente aos jornalistas, apontei o erro, que considero grave. Em resposta, o autor da reportagem, Marcelo Rubens Paiva, disse considerar "curiosa'' minha posição.
"Trata-se de uma entrevista, acompanhada de resenha, em que o autor expõe detalhes contundentes de sua obra, entre eles a participação indireta de Paulo de Tarso Venceslau.'' Paiva argumenta que seu texto original, reduzido pela edição, era mais detalhado e continha declaração do entrevistado dando conta de que Venceslau nega sua versão.

Em primeiro lugar, pondero que a ombudsman apenas pode considerar o texto tal como chegou ao leitor. Em segundo, considero que o ponto aqui levantado permanece intacto: por que a reportagem não ouviu Venceslau?

"Tratava-se de crítica a uma biografia'', responde Paiva. "Se um crítico tiver de ouvir todos os "outros lados', o exercício da crítica se torna inviável.''
É possível que o repórter não tenha errado sozinho, mas seu argumento não se sustenta.

Não se trata apenas de uma crítica, mas sim da apresentação de um livro cujo autor dá em entrevista sua versão para um episódio histórico nebuloso. Será que o acusado não tem nada a dizer?
Tanto tem que enviou carta ao repórter no dia em que o texto foi publicado. No documento, encaminhado por Paiva na sexta-feira à ombudsman, Venceslau nega com veemência a história contada por Emiliano José, além de fazer uma série de críticas à forma como foi coletado material para a biografia de Marighella.

Se o "Manual'' tivesse sido respeitado, essas informações teriam saído no jornal. Quem tem problemas com Paulo de Tarso Venceslau é o PT, e não a Folha. Estamos em ano eleitoral, o que deveria levar a um zelo redobrado com o equilíbrio e a isenção


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