Folha de S. Paulo


Separados pela adoção: cinco irmãos e um reencontro 20 anos depois

Depois de duas décadas na Itália, Bruno Ettore Pepoli, 28, retornou ao Brasil em meados de março para um reencontro com a própria história. Nascido em São Vicente (65 km de SP), ele foi adotado por um casal de Milão em 1994, junto com o irmão caçula, Tiago, 26.

Ao embarcarem em Guarulhos rumo à nova vida na Europa, os dois brasileiros deixaram para trás três irmãos: Rafaela, 33, Kléber, 32, e Cláudio, 29. O trio morava em um abrigo para menores, enquanto os pequenos foram acolhidos em um orfanato.

Os cinco haviam sido abandonados pelos pais –na época, o mais novo tinha pouco mais de um ano de vida; a mais velha, nove.

"Eu me recordo bem do dia que chegamos à Itália. Era 13 de dezembro e nevava", relata Bruno, enquanto saboreia um bolo de chocolate feito pela irmã mais velha para recebê-lo em sua casa na Baixada Santista.
Rafaela Nascimento não esconde o orgulho de hospedar o irmão. "Foi tudo ter o Bruno dormindo aqui em casa nesta noite. Até falei pra ele: 'Desculpa, a gente é pobre, mas temos nosso amor para te oferecer. Bem que ele podia vir morar aqui, mas sei que tem uma vida na Itália".

Tímido e mais contido por natureza, Bruno pede que a irmã dê os detalhes do esfacelamento da família consanguínea. "A gente se separou muito cedo. Eu não consigo entender nem perdoar", inicia Rafaela, tomando ar para rememorar o dia em que a mãe os deixou na porta da avó paterna.

A única menina da prole se deparava ali com o adeus da mulher a quem não consegue mais chamar de mãe. "O nome dela é Rosa. Está viva e mora em Cubatão, mas nunca mais nos procurou." A última lembrança da figura materna é torturante. "Ela me deu um beijo na testa e disse que um dia eu ia entender. Foi embora sem olhar para trás." Rafaela é mãe de uma garotinha de seis anos e diz que nunca vai entender "como alguém abandona um filho".

NO MEIO DA GUERRA

Rosa perdeu a guarda das cinco primeiras crianças que pôs no mundo. "Dizem que ela teve outros cinco filhos", informa a primogênita. O pai, então funcionário de uma empresa de carro-forte em São Paulo, também foi destituído de pátrio poder.

É Kléber Nascimento Júnior, que carrega o nome dele, quem conta depois outros detalhes igualmente dolorosos. "Eu tinha sete anos, mas me lembro direitinho. Em 1989, começou a guerra entre nossos pais. Meu pai trabalhava, enquanto minha mãe saía para a gandaia. Ela me levava, quando ia se encontrar com outro. Eu ficava revoltado".

Até que o marido descobriu a traição. Kléber Prossegue: "Ele quebrou a casa toda e também arrebentou ela na porrada. Não sei como não a matou na nossa frente. Então, meu pai arrumou as malas, deu um abraço na gente e nunca mais voltou".

Os filhos estavam sozinhos, quando Rosa retornou da casa de uma amiga onde se refugiara. Ela saiu espalhando a criançada entre os parentes. Tentou manter Kléber, seu preferido. Ele, no entanto, fugiu para ir atrás dos irmãos na casa da avó.

O juiz da infância entendeu que a idosa de saúde frágil não teria condições de criar os netos. Sob a tutela do Estado, Bruno e Tiago foram para o Lar de Assistência ao Menor, enquanto os demais eram abrigados na Casa do Menor, ambas em São Vicente. "Nossa avó era a única que nos visitava. Ia na Páscoa, Natal", recorda-se Rafaela.

PASSEIOS JUNTOS

Nos primeiro anos, o quinteto dividido só se reunia nas excursões das duas instituições, momentos gravados na memória de todos. "A gente era muito agarrado. Nos passeios, assim que juntavam os ônibus, Bruno e Tiago iam direto para o meu colo. A gente sentava na mesma poltrona. Eles se sentiam protegidos comigo. Como sou a mais velha, era a mãezona deles", emociona-se Rafaela.

Bruno providencia um lenço de papel para a irmã. Na visita a Kléber no dia anterior, o irmão também rememorou cicatrizes. "Como Bruno era muito pequeno, devia ter uns três anos e o Tiago ainda mamava no peito, fui fazendo uma retrospectiva, contando tudo aos poucos. Lembramos até de ele ter sido atropelado em 1988, por negligência da nossa mãe."

O laço entre os irmãos parece não ter se quebrado mesmo com um Atlântico a separar os dois grupos –os adotados e os deixados para trás. A partir da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, a legislação brasileira preconiza que irmãos não sejam separados em processos de adoção.

Kléber se recorda da revolta que sentiu quando a assistente social comunicou aos três maiores que os pequenininhos foram para o exterior. "Eu fechei a mão e comecei a dar murro na parede, na mesa. Fiquei revoltado de eles terem separado a gente sem avisar antes. Foi um choque que durou anos. Sempre senti falta deles. Só tive alívio quando vi o Bruno", afirma.

Na tarde da quarta-feira passada, Bruno e Rafaela viveram emoções fortes quando ele a colocou em contato, por Skype, pela primeira vez com o caçula. "Tiago não fala português. Bruno fez as vezes de intérprete. Eu falei para os dois chorando, enquanto pegava na mão do Bruno, que nunca se esqueçam que têm a nós três aqui no Brasil."

VIA-CRÚCIS NO FÓRUM

Rafaela narra sua via-crúcis para tentar descobrir o paradeiro dos irmãos menores. "Fui várias vezes ao fórum, mas chegaram a me acusar de querer procurar eles para pedir dinheiro", revolta-se. "A intenção era ter uma foto, enviar uma carta para dizer que estávamos vivos."

O temor de que tivessem sido esquecidos era infundado. "Tantas vezes, procurei por eles pela internet, mas não tive sucesso. Meu pensamento sempre foi o de retornar um dia", pontua Bruno, que pretende ficar até julho no Brasil, caso encontre emprego aqui como professor de inglês.

Em 2009, ele retornaria ao Brasil como voluntário da AMI (Amici Missionari Indiani), associação que lida com adoção internacional na Itália. "Viajei com outros dois jovens, também adotados, um outro brasileiro e uma indiana. Ficamos 15 dias em São Sebastião [nos arredores de Brasília], onde montamos uma brinquedoteca. Depois fomos para uma escola agrícola no Tocantins."

O fim da viagem reservava uma surpresa. O pai italiano de Bruno havia procurado o fórum para que fosse organizado um encontro dele com os irmãos que ficaram aqui. "Só soube na véspera. Passamos uma tarde juntos. Ficamos contentes, mas foi muito breve. Por isso, estou de volta e minha missão é retornar com Tiago."

Além de ter descoberto os sabores, cheiros e costumes de sua terra, Bruno entrava em contato com a dureza da vida dos irmãos no Brasil.

"O pai deles morreu aos 36 anos, enquanto a mãe frequenta a cracolândia daqui de São Vicente", lamenta Eunice Pavarini, conselheira tutelar do município. Ela acompanha o caso há duas décadas, primeiro como voluntária nas instituições de acolhimento e depois como madrinha de Kléber, a quem acolheu em casa aos 15 anos.

SEGUNDO ABANDONO

O trio que ficou precisou sobreviver a um outro "abandono", desta vez na adolescência: quando completam 18 anos, foram obrigados a sair das instituições e deixaram de ser tutelados pelo Estado. "Sem profissão, sem família e sem endereço, eles são lançados na rua e à própria sorte, ainda muito vulneráveis", testemunha Eunice.

"Ela foi uma mãe para mim", diz Kléber. "Tudo que os dois filhos da tia Eunice tinham, eu tinha igual. Do tênis à educação". Foi na casa da conselheira que Kléber e Rafaela celebraram o reencontro com Bruno, em um jantar na segunda-feira (30).

"Tia Eunice foi um anjo na nossa vida", agradece Rafaela. Ela também teve uma madrinha no orfanato. "Mas ela nunca foi próxima. Hoje, passa por mim e faz de conta que não me conhece".

Aos 13 anos, Rafaela recusou a única possibilidade de adoção que teve, vinda de um casal mexicano. "Disse para a assistente social que só iria para o México com todos os meus irmãos." Uma prole tão numerosa não estava nos planos dos mexicanos.

Quando deixou o abrigo, ela foi bater na casa da avó, onde também vivia o pai, que tinha doença de Chagas. Conviveu com os familiares do final de 1999 até a morte de ambos em 2003. "Eles me ajudaram como podiam, mas minha avó morreu em setembro e meu pai, em dezembro. Foi duro perder os dois em três meses. Então, me juntei com meu namorado, que eu conheci quando tinha 14 anos. Estamos juntos até hoje. Ele é tudo pra mim".

Já Cláudio, o mais novo entre os que ficaram, não conseguiu estabelecer laços que pudessem ter um papel estruturante na sua vida pós-orfanato. Acabou nas ruas, onde se deparou com as drogas e a criminalidade. "Ele passou por algumas clínicas de reabilitação e foi preso por se envolver com desmanche de moto", explica Eunice. "Hoje, ele tem um quartinho na casa de um pastor, mas vive nas ruas."

Na primeira visita ao Brasil, Bruno foi visitar Cláudio em um hospital, onde ele se encontrava internado com tuberculose. Desta vez, o reencontro foi mais festivo, na Praia Grande.

Os mais velhos tentam ajudar o irmão mais vulnerável. "Cláudio tem um bom coração, mas era o mais frágil de nós e nunca se recuperou de tantos problemas", lamenta Kléber. "Ele não está bem, mas não quer se ajudar. Entregamos na mão de Deus".

Casado e pai de duas meninas, Kléber é mecânico de caminhões. Orgulha-se da própria resiliência. Diz hoje ter superado a revolta pela separação forçada dos irmãos menores. "Bruno e Tiago fizeram o certo. Estão em um lugar onde foram bem acolhidos. Viraram cidadãos. Estão melhor do que se tivessem ficado no Brasil", acredita.

FAMÍLIA ITALIANA

O relato de Bruno corrobora a avaliação. Ele diz que a paisagem branca da chegada sob neve e o frio do inverno europeu foram logo compensados pelo calor de uma família tipicamente italiana. "Nossa adaptação foi fácil. Logo, comecei a chamar Piero de papai e Maria de mamãe, porque eles se mostraram de cara pessoas muito disponíveis", diz Bruno.

Os recém-adotados vinham de uma experiência traumática, após uma primeira tentativa de adoção por outro casal de italianos da Sardenha. No período de 40 dias em que conviveram no Brasil antes de formalizar o processo, o caçula costumava apanhar do "candidato" a pai, que se irritava com as dificuldades do garotinho em aprender. "Eu ia defender o Tiago e também apanhava. Acabamos decidindo que não queríamos ser adotados por eles nem por ninguém mais", conta Bruno.

O casal milanês –ele sindicalista, ela secretária, na faixa dos 40 anos e sem filhos– apareceu na sequência e precisou quebrar a resistência da dupla escaldada.

E mostraram-se pais de verdade tanto na quarentena quanto nos anos seguintes, segundo Bruno. Tiveram uma vida de classe média, com conforto. "Quando eu queria algo, tinha que fazer por merecer", conta Bruno, citando o exemplo da Vespa, objeto de desejo presenteado quando fez 16 .

O fato de serem filhos negros de pais brancos não foi um problema. "Nunca tive dificuldades. Claro que no início havia muita curiosidade da parte dos meus colegas de escola, mas jamais fui vítima de racismo ou bullying".

Aprendeu também valores e a importância de afetos construídos. "Eles me mostraram que o sentimento de adotar não é mais nem menos do que aquele de fazer uma criança, no sentido que me quiseram como filho. Desde o primeiro dia em que estivemos juntos, nos sentimos amados como tal, mesmo não tendo o mesmo sangue".

CURIOSIDADE E RANCOR

O pai italiano morreu em 2009, pouco depois de ele retornar do Brasil. Bruno diz ter vontade de ver uma foto do pai biológico, mas os irmãos ainda tentam achar alguma imagem dele. Por enquanto, só conseguiram resgatar uma foto amarelada dos cinco irmão juntos, a única de quando eram crianças.

A mãe italiana de Bruno e Tiago está aposentada e foi convidada por Rafaela a vir ao Brasil. Bruno diz ter curiosidade em relação à mãe biológica. "De um lado, não é mais simples ter sido abandonado, mas queria vê-la, saber como é fisicamente. Não para entender as suas razões, que ela deve ter tido, embora eu não concorde e sofra as consequências".

Kléber é mais taxativo. "Já me reencontrei com nossa mãe. Parei o carro e disse que nunca mais queria vê-la na minha frente. Tenho muito ódio dessa mulher que colocou toda a sua vida num abismo. Também guardo mágoa do meu pai, por ele ter jogado a toalha e deixado a gente sozinho com ela".

Bruno tem sentimentos conflitantes também diante da trajetória de superação dos irmãos. "Sempre me perguntava se eles estavam bem, se tinham uma bela vida." Quando os reencontrou, diz ter se surpreendido positivamente: "O que me agrada no Brasil é que existe humildade. Basta uma pequena coisa para fazer uma pessoa feliz. E meus irmãos são assim. Percebi que eles estão felizes e também encontraram a sua estrada, apesar das dificuldades." E confessa ter se sentido "um pouco culpado" por tê-los deixado para trás. "Objetivamente, tive uma vida mais estruturada e mais fácil do que a deles".


Endereço da página:

Links no texto: