Folha de S. Paulo


As histórias de falso horror sobre a reforma da saúde

Você se lembra do "imposto sobre a morte?" O imposto sobre heranças é, literalmente, um imposto sobre os milionários, e só uns poucos herdeiros de milionários costumam pagá-lo.

Mesmo assim, a direita teve sucesso em convencer muitos eleitores de que o imposto representa um cruel fardo para os norte-americanos comuns - e de que em todo o país muitas pequenas empresas e fazendas de família estão tendo de ser divididas para bancar o pagamento de pesados impostos de herança.

Seria o caso de pensar que casos assim dolorosos são extremamente raros, mas quem o fizesse estaria errado: na realidade, eles são inexistentes.

Ninguém, especialmente, conseguiu oferecer um exemplo cotidiano real de uma fazenda de família vendida para pagar impostos de herança.

Toda a campanha do "imposto sobre a morte" dependia de extrair simpatia humana por vítimas puramente imaginárias.

E agora a mesma coisa está sendo tentada quanto à reforma da saúde. Não tenho certeza de que os conservadores compreenderam ainda que seu plano A para a reforma da saúde - esperar pelo inevitável colapso do Obamacare e colher as recompensas políticas - não está funcionado.

Mas o fato é que não está. O número de inscrições se recuperou vigorosamente, depois do começo desastroso da nova lei; na Califórnia, cujo site de inscrição para o programa funcionou bem desde o começo, o número de inscritos já excede as projeções para seu primeiro ano de vigência.

O mix de inscritos até agora tem idade média mais elevada que a planejada, mas não o bastante para causar grandes aumentos nas mensalidades dos planos de saúde, quanto mais a muito aventada "espiral da morte".

PLANO B

E os conservadores na prática não têm um plano B. No mundo deles, ninguém nem ousa mencionar a possibilidade de que a reforma da saúde possa se provar funcional.

Mas ainda assim já se pode ver algumas pessoas da direita tateando em busca de uma nova estratégia, baseada em exemplos que destaquem os terríveis danos causados pelo Obamacare.

Só existe um problema: eles não conseguiram encontrar quaisquer exemplos reais. Considerem diversas empreitadas recentes da direita:

- Na resposta oficial do Partido Republicano ao discurso do presidente Barack Obama sobre o Estado da União, a deputada Cathy McMorris Rodgers aludiu ao caso de "Bette, de Spokane", que supostamente perdeu seu plano de saúde e foi forçada a assinar um novo plano com mensalidade US$ 700 mais cara.

Repórteres locais localizaram a verdadeira Bette, e constataram que a história era completamente enganosa: o plano de saúde original que ela tinha oferecia pouca proteção, e ela conseguiu obter um plano muito superior ao original por preço bastante abaixo do alegado.

- Em Louisiana, o Americans for Prosperity, uma falsa organização "de base" que na verdade parece em larga medida ser controlada pelos bilionários irmãos Koch e outros patrocinadores ricos, vem veiculando anúncios contra a senadora Mary Landrieu.

Nesses anúncios, vemos o que parecem ser cidadãos comuns da Louisiana recebendo notificações de que seus planos de saúde foram cancelados por causa do Obamacare.

Mas as pessoas que aparecem nos anúncios na realidade são atores, e as cenas que interpretam não são encenações de eventos reais; elas na verdade são "emblemáticas", diz um porta-voz da organização.

- No Michigan, a Americans for Prosperity está veiculando um anúncio que mostra uma pessoa real. Mas a pessoa está contando uma história real?

No comercial, Julia Boonstra, paciente de leucemia, declara que seu plano de saúde foi cancelado, que um novo plano teria um custo inicial inacessível para ela e que "se eu não receber meus remédios, vou morrer".

Mas Glenn Kessler, do jornal "Washington Post", tentou verificar os fatos alegados e descobriu que, graças às mensalidades mais baixas dos novos planos de saúde, ela terminaria por economizar muito mais dinheiro do que gastaria no pagamento inicial.

Um porta-voz da Americans for Prosperity respondeu a perguntas sobre os números com enrolação e duplicidade - o comercial fala de uma "pessoa real que sofre de câncer no sangue, e não de um PowerPoint arrumadinho preparado pela Casa Branca".

Até mesmo os defensores da reforma da saúde estão um tanto surpresos diante da aparente incapacidade da direita de encontrar casos reais de problemas causados pelo Obamacare.

Certamente deve haver pessoas em algum lugar que estão de fato sofrendo com uma reforma que afeta milhões de norte-americanos. Por que a direita não é capaz de encontrar essas pessoas e explorá-las?

A resposta mais provável é que os verdadeiros prejudicados pelo Obamacare em geral não atraem simpatia. Em sua maioria, são ou pessoas muito afluentes prejudicadas pelos impostos especiais que ajudam a financiar a reforma ou no mínimo homens jovens, muito saudáveis e em situação financeira moderadamente boa, que já não podem optar por planos baratos e minimalistas.

Nenhum desses dois grupos serviria de bom tema a um comercial cheio de lágrimas.

Não, o que a direita precisa encontrar são norte-americanos médios, de preferência mulheres, que estejam enfrentando devastação financeira devido à reforma da saúde. E assim, é esse tipo de história que ela conta, mesmo que exemplos reais não tenham sido encontrados.

Bem, tenho uma sugestão: por que não criar comerciais em que atores interpretem norte-americanos que perderam seus planos de saúde por causa do Obamacare e a fazenda da família por conta do imposto sobre a morte? Afinal, se a questão é simplesmente inventar coisas, qualquer história passa.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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