Folha de S. Paulo


'O número que você ligou não recebe...'

Há algumas semanas não consigo fazer telefonemas para determinado DDD paulista. É só um que não dá certo. O pessoal da operadora se esforça, diz que vai resolver, mas por enquanto nada de nada. Faço a chamada e ouço mais ou menos isto: "O número que você ligou não recebe chamadas ou não existe".

Nas minhas primeiras reclamações ouvi perguntas absurdas, como "O senhor está colocando o código da operadora?" ou "Como é que o senhor está fazendo a chamada?". Nessas horas, a minha vontade é dizer que com uma das mãos tento fazer a chamada e com a outra dou com o sorvete na testa... Elaiá!

Felizmente, na operadora ninguém mais duvida de que não se consegue mesmo fazer a ligação. Falta resolverem o problema.

Pois bem. Voltemos à frase que não aguento mais ouvir ("O número que você ligou..."). Sob a ótica do padrão formal da língua, há nela algum desvio, algum "erro"? Darei uma dica citando ninguém mais ninguém menos do que Cecília Meireles: "Nem aquilo a que me entrego já me dá contentamento".

E então? O caro leitor já sabe onde está o xis da questão? Vamos lá: por que Cecília escreveu "Nem aquilo a que me entrego"? Por que ela pôs esse "a" antes do relativo "que"? De onde vem esse "a" afinal?

Vem de "entregar-se". Se alguém se entrega, entrega-se a algo ou a alguém (a algo, no caso dos versos de Cecília). Moral da história: se alguém se entrega a algo, esse "a", regido por "entregar-se", não desaparece, ao menos no padrão formal da língua. Na oralidade, esse sumiço da preposição que antecede o pronome relativo é fato consumado. "A rua que eu moro...", "A roupa que ela estava ontem..." ou "Os países que eu fui..." são construções comuns em bocas de todos os calibres.

Como ficariam os três últimos exemplos se fossem adaptados ao padrão formal? Vamos lá: "A rua em que moro...", "A roupa com que ela estava..." e "Os países a que fui...". De onde saíram as preposições postas antes do relativo "que"? Vamos lá: "morar em", "estar com determinada roupa", "ir a algum país".

Antes que alguém pergunte se "A rua em que moro" não pode virar "A rua na qual moro", se "A roupa com que ela estava" não pode virar "A roupa com a qual ela estava" e se "Os países a que fui" não pode virar "Os países aos quais fui", vou logo dizendo que isso é perfeitamente viável, já que o relativo "que" pode ser trocado por "a qual", "a qual" e "os quais", respectivamente.

E a tal frase da operadora de telefonia? Como era mesmo? Lá vai: "O número que você ligou não recebe...". Afinal, há ou não há algum "erro"? Num primeiro momento, o ímpeto é dizer que há, porque o que nos vem à mente é "ligar para São Paulo", "ligar para Guaratinguetá", "ligar para alguém", o que poderia gerar uma construção como "O número para o qual você ligou", mas...

Mas é bom lembrar que, como atestam os nossos dicionários, "ligar" pode ser sinônimo de "discar", "teclar", "digitar", caso em que pode ser usado com preposição ou sem ela: "Liguei o número errado"; "Liguei para o número errado".

Moral da história: não há nenhum "erro" na frase que ouço há algumas semanas (e que não aguento mais ouvir). O erro está na impossibilidade de completar a ligação...

Encerro com Drummond: "Eu preparo uma canção em que minha mãe se reconheça...". É isso.

inculta@uol.com.br


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