Folha de S. Paulo


O custo da última palavra

A última palavra do Supremo está sendo aguardada para definir o destino de deputados estaduais envolvidos em escândalos de corrupção. Aguardar a última palavra do Supremo tem sido uma constante nas mais variadas esferas da vida nacional nas últimas décadas.

Como explicar que a Assembleia Constituinte, formada em grande maioria por políticos profissionais, assim como sucessivos governos, tenham conferido tantos poderes a uma corte, habilitando-a a controlar diversas dimensões nucleares da nossa política?

Se em política ninguém abdica voluntariamente do poder, como compreender essa paradoxal e paulatina delegação de poderes ao Supremo, ocorrida ao longo dos últimos 30 anos? Essa foi a provocação que recebi de meu colega Carlos Pereira, da FGV, que organizou nesta semana um importante debate sobre o Estado de Direito na América Latina.

Creio que o processo de fortalecimento do Supremo está associado a dois fatores: a generalizada desconfiança entre os atores políticos e uma alta fragmentação partidária durante o processo constituinte.

De um lado, os atores políticos que contribuíram para a queda do regime militar temiam que a democracia não se estabilizasse e que o princípio da alternância no poder não fosse respeitado pelo primeiro que lá chegasse.

Também desconfiavam que as demandas por uma sociedade mais justa não seriam cumpridas pela Nova República. Em sentido oposto, setores tradicionais, como os ruralistas, assim como aqueles mais ligados ao mercado, receavam que a onda democrática e distributivista pudesse ir longe demais, subvertendo seus interesses e mesmo levando a ingovernabilidade.

A desconfiança generalizada associada à fragmentação política criaram um forte incentivo para que os constituintes buscassem maximizar seus próprios interesses, assim como os interesses de seus representados. O resultado foi o entrincheiramento de privilégios, prerrogativas, competências, mas também de um longo catálogo de direitos legítimos no texto constitucional. Isso explica a adoção de um documento tão amplo, ambicioso, minudente e, em diversos aspectos, contraditório.

O contrato sem a espada, no entanto, é de pouca valia, como já nos ensinou Thomas Hobbes. Daí a necessidade de se constituir um árbitro forte, confiável a todas as partes, conferindo a ele poderes para garantir os inúmeros compromissos firmados no pacto constitucional. Ao Supremo, assim, atribuiu-se a tarefa de proteger a Constituição, mediar as disputas entre os poderes, julgar políticos e supervisionar as demais instâncias da Justiça.

O exercício sistemático de tantos poderes tem, no entanto, exacerbado a fragmentação da jurisdição do Supremo, ampliando o risco de contradições e inconsistências nos seus julgados. Essas inconsistências, por sua vez, ampliam a desconfiança da sociedade no tribunal, como mostra a última edição do Índice de Confiança na Justiça (ICJ) produzido pelo FGV Direito SP.

A preservação da autoridade do tribunal, indispensável ao exercício da função de guardião do pacto constitucional, depende da transferência de uma larga parcela de suas atribuições para as demais instâncias do sistema de justiça, assim como de uma radical reformulação de seu processo de deliberação, privilegiando a colegialidade em detrimento das individualidades.


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