Folha de S. Paulo


Por que não bebi todos os martínis?

Avener Prado - 20.out.2012/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 20-10-2012: Dry Martini (tradicional), Noh Bar, diferentes versões de Martini. (Foto: Avener Prado/Folhapress, COMIDA) ***EXCLUSIVO FOLHA***

Acho que foi a chicungunha. Acho. Ninguém fez exame, ou melhor, ninguém conseguiu fazer um exame qualquer no hospital porque perguntaram se eu queria alguma coisa e respondi "uma Coca bem gelada" e a atendente que era nova me deu, num copinho de papel. O médico fez menção de matar as duas, "o jejum, o jejum", gritava ele, e foi uma corrida na cadeira de rodas do hospital (em greve), pelos labirínticos corredores até a saída, ufa!

A única vantagem foi essa, no meio daquela aridez de deserto (como são feios os hospitais), um copo de Coca-Cola! Bênção, nada menos que uma bênção, e um recado: foge, vai-te, morre de morte morrida!

Só que depois vem a reflexão pós-verdade, pensar na vida que passou. Como foi ridículo desperdiçar tantas oportunidades, porque não fui mais alegre, não dancei mais, não beijei na boca, não dei de mamar a todas as crianças, não levantei junto com o sol, não cavuquei todo o jardim, não visitei todas as terras, não arrumei rosas em vasos, não bebi todos os martínis, não atravessei todas as pontes, não me balancei nas redes de macramé, não domei o cavalo branco, não segurei a testa dos que sofriam, nem alcancei todas as cachoeiras?

Até Adélia Prado, com grande chance de se tornar santa, pergunta "Vede como nossos filhos nos olham/ como nos lançam em rosto/ uma conta que ignorávamos/ Não cariciosos, convertem em pura dor/ a paixão que os gerou/ Por qual ilusão poderosa/ nos veem assim tão maus/ a nós que tal como eles/ buscamos a mesma mãe/ concha blindada a salvo de predadores".

Não sei se entendi bem o final, mas ele sempre fala em Deus, deve ser dele que fala, da Virgem, do Espírito Santo.

Para muitos restou a mais corriqueira das atividades dentro da vida, arroz com feijão, feijão com arroz, alguns pernis. E a chuva de janeiro, você ainda fraca como uma gelatina em camadas, umas mais duras que as outras que ainda tremem, medrosas.

Choveu tanto que a hera acabou de cobrir cada pedaço da casa, agora quer entrar pelas janela, empurra o vidro, se achata contra ele chupando mais uma gotas, quer morrer saciada quando a noite chegar. Corta a hera, a vida vai brilhar sem hera, escurece a casa, vocês não sabem de nada, ela tem cinquenta anos, a dona da casa é ela, não sou eu, sou a exilada, ela é que cavou seu lugar definitivo, prestem atenção.

Na minha cabeça não cabem pensamentos de hera, é sempre a mesma coisa, costelinha com quirera ou foie gras com musse de jaca? É isso que faz a força do ser humano, conseguir esquecer o que importa e brigar pelo óleo de coco, se faz mal se faz bem, pelo ovo de pata ou de galinha. A chicungunha roeu nossos ossos de pensar desde o começo dos tempos, é isso que nos cega para o infinito e só vemos o galinheiro de olhinhos redondos e espantados.

A nossa sorte é a pós-verdade que nos ajuda a enfrentar a verdade verdadeira. É o café da manhã no canto da sala, o cheiro de manga coquinho. Quem inventou a manga coquinho só pode ser um Deus tolerante que se esconde, mas tudo perdoa. Não há limites de tolerância para quem inventou a manga coquinho. Ou o milho colhido na hora, cozido e comido com um pouco de boa manteiga. Não teria inventado essas joias que nos arrancam do corriqueiro se elas fossem tentação ou pecado. Veio aqui um homem buscar o caroço da manga, quer que seus filhos rezem por essa cartilha de extrema doçura. Eu, meio descrente, dei. Já me ia esquecendo da jabuticaba, a maior das orações, quando fresca e muita.


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