Folha de S. Paulo


É a compra de ingredientes que te inspira a cozinhar gostoso

Alf Ribeiro/Folhapress
BRASIL, SÃO PAULO, SP, 09/05/2013. FEIRA-LIVRE. Barraca com tomates na feira-livre da Rua Tapes, no bairro de Campo Belo, zona sul de São Paulo, SP. (foto: Alf Ribeiro/Folhapress)

Pra vocês que me leem há tanto tempo preciso contar a verdade. Pouca gente sabe. Pois é. Tenho que revelar que depois que fechei o bufê, vivo como aqueles presos da Lava Jato, de tornozeleira brilhante de alumínio. Pensei que não iria me importar muito (com a tornozeleira), pois há bastante tempo desenvolvi a teoria que os velhos vivem mais se imóveis. Exercito a imobilidade com fervor, reparem que os velhos quando se mexem muito quebram o fêmur, tomam golpes de ar, torcem o pescoço, enfim. Leitora ávida de Cortázar, sei, como sabia a tia dele, que as baratas que caem de pernas para o ar, babau, não conseguem voltar à posição primitiva. Tem dado certo. Uma pequena gripe ali, outra aqui e vamos indo.

Moro num bairro afastado, cheio de verde, não dirijo, e o supermercado mais perto só de Uber. Claro que dentro do bufê era só piscar o olho como a
Feiticeira e me aparecia o mais brilhante robalo, os camarões pistola impossíveis, os ovos caipiras, as cerejas da estação, a papoula recém-chegada, as florzinhas do bosque, e além de tudo tinha uma horta, que não vinha a mim, eu ia ao Ceasa, punha o olho nos temperos e eles chegavam em
casa prontos para serem enfiados na terra. Agora um Uber a cada salsinha não resolve.

Muita gente se oferece para fazer minha compra. Não adianta que outra pessoa faça sua compra se você quer cozinhar gostoso, do seu jeito, reaprender umas coisas que esqueceu, experimentar outras novas. É o prata da sardinha, o verde da alface, o roxo da beterraba, o cheiro do pão fresco, do coentro, que te inspiram. É toda a situação de compra, do que escolher no meio das frutas que se oferecem, qual delas vai combinar com pimenta e com arroz moti? Acho que é manga, mas não tendo, será que a nova daikon.... tão crocante não fará as vezes de... Claro que existem ingredientes básicos que usamos todos os dias. Claro que adoro um ovo frito com a clara esturricada, mas tem dia que a alma pede uma novidade.

Às vezes fico de olho parado, pensando no que fazer. Por exemplo, um molho espetacular. A maionese. Precisa de Uber? Um prato fundo, um garfo, sempre um garfo que se adaptará ao fundo do prato, uma gema, pouco óleo, um tico de vinagre ou limão, mas tudo aquilo aos poucos. Uma surpresa a cada minuto, vai desandar, não vai, está grossa, junte o vinagre branco ou o limão, rala demais? Ora, mais um fio de óleo, cuidado para não exagerar e, assim, chegamos a um molho untuoso, de um amarelo nude, brilhante mas nem tanto.

Sobrou um tomate, pode-se fazer uma torrada. Eis que jantamos um sanduíche de tomate sem exercícios maléficos para o corpo. Agora a alma sofre um pouco. O tomate é sem nenhuma doçura, o pão de forma um arremedo de pão, só se salva a maionese na qual se arriscou uma munheca deslocada. Querendo ou não, hay que vivir, só a vida perigosa traz amores.


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