Folha de S. Paulo


Entrevistona fake

Há bastante tempo o Paulo Werneck, editor, me pediu que escrevesse sobre um desenhista do qual eu já tinha ouvido falar, Saul Steinberg. Aceitei. E é aí que você corre para o Google, para as bibliotecas, para os amigos. Fiquei fã incondicional do homem e da sua linha. Comprei todos os livros, li todos os ensaios, e tive até vontade de desenhar. Tentei. Não deu certo. Ele é gente desse tipo, um ilustrador que te dá vontade de ilustrar.

Até hoje me amarro nele. Não sei onde foi parar o artigo que fiz sobre ele, na Folha, mas para meu divertimento fiz o que gostaria de ter feito de verdade, eu o entrevistei de mentira.

Falando mais de comida, é claro, afinal minha seção na Folha é de comida. Ninguém leu, era o primeiro dia de um obscuro blog. Hoje, modificado, um pouquinho grande (a vida dele foi tão cheia de desenhos), trago de volta esse homem maravilhoso.

De verdade, é para o meu facefriend arquiteto, Marco Antonio Silva que me ajuda demais, nem quero saber como consegue colocar fotos nas minhas postagens, eu não consigo, ele vai lá e dá um jeito. Cara genial, gosto dele demais.

Acho que vocês também vão acabar amigos dele, vale muito pena. Abaixo a entrevista fake.

*

Mock-entrevista com Saul Steinberg (PARTE 1)

Nina Horta - Imaginei que não se importaria com uma entrevista falsa, afinal o senhor é o mestre das máscaras de papel, dos envelopes forjados, da caligrafia perfeita que não diz nada.

Saul Steinberg - Não me importo mesmo, todas as entrevistas são falsas. Mais uma, menos uma...

Só agora saiu em português a autobiografia a quatro mãos com seu amigo Aldo Buzzi (Reflexos e Sombras - Saul Steinberg e Aldo Buzzi. Ed. IMS). É um livro pequeno, afinal quatro capítulos para o desenhista mais conhecido do mundo é pouco. O que mais me surpreendeu foi como a comida tomou um viés tão importante na sua biografia. Foi quando descobri que o seu amigo Aldo Buzzi escrevera um livro de cozinha que o senhor ilustrara.

Certo, O Ovo e Eu. Muito interessante o livro dele. Muitas vezes o uso para fazer uma omelete ou mesmo para reler e me divertir um pouco. Aldo sempre foi muito erudito e espirituoso e nós dois tínhamos o mesmo gosto por comida boa.

Então vamos começar com as lembranças de infância, afinal, são sempre as que mais nos marcam

Fui um menino pobre na Romênia. Não, exatamente pobre, mas com aquela vidinha apertada, ida e volta ao colégio, brincando em casa na fabriqueta do meu pai. Era uma sociedade sem mistérios. Tudo se passava em volta de grandes pátios, para onde davam as casas, com as janelas abertas, onde, imagine, todos podiam olhar, espiar.

Sei que tem um nariz muito afiado para cheiros.

Afiado e grande. Uma vez o editor da "New Yorker" me chamou pedindo que diminuísse o nariz das pessoas, que na América os narizes eram menores. Fingi que concordava mas nunca tirei um milímetro do nariz de desenho algum.
De vez em quando sinto alguns cheiros de infância, sem mesmo saber o porquê, não como um cheiro propriamente dito, mas do cérebro do nariz; cheiros de outonos alaranjados, da lenha para a lareira, da relojoaria do meu tio, e do lampião a querosene, uhm, demais. Gosto de me lembrar dos cheiros, mas só sinto algum específico quando ele aparece. Não sou capaz de trazê-los ao nariz por vontade própria.

Seu pai era encadernador de livros, entre outras coisas. Um lugar muito cheiroso, sem dúvida, papéis, colas, tintas, caixas, daí deve ter vindo sua paixão pelos lápis, por papel, por cores.

E me lembro de tudo, da Páscoa judaica quando o trabalho aumentava pois era preciso fazer muitas caixas para o pão ázimo que seria servido. Estes pátios internos das casas eram muito interessantes. Nós, as crianças, gente trabalhando, muita galinha, de vez em quando um porco. Galinhas eram consideradas como gatos e cachorros. Podiam entrar em casa sem problema. Mas ai de um pato se atrevesse a passar o umbral da porta da cozinha. O ganso entrava sem perguntar, tinha autoridade. Os galos andavam com passos de bailarinos, ou às vezes em marcha militar. Reparou nos meus desenhos de paradas militares? Vem muito desse andar de gansos, um atrás do outro.

E a comida, como era?

Judaica, um pouco russo-polonesa, um pouco do norte da Romênia, à maneira húngara, muita páprica e legumes. Aos sábados servia-se um prato especial preparado na sexta, e depois deixado sobre brasas para não esfriar; e que por fim na hora de comer era transformado numa espécie de gelatina que já não se parecia nem com o frango original, nem com coisa nenhuma...
Mas em matéria de comida, acho que deveria me lembrar mesmo da inspiração que carreguei comigo das linhas e laços e círculos dos bolos que minha mãe decorava.

MILÃO E AMÉRICA

E foi estudar arquitetura em Milão...

Ah, foi maravilhoso. Me senti pela primeira vez sozinho, dono de mim mesmo. Vivi oito anos lá, mas em 1940, um pouco antes da entrada da Itália na guerra, eu sabia que seria preso por ser judeu. E fui.

Sofreu muito?
Não. No dia em que saí, os outros presos inventaram uma festa para mim. Puseram mais açúcar no chá e arranjaram mais pão. O lugar chamava-se Tortoretto. E os principais alimentos de lá eram pães e chá. Não havia café. E na Itália não gostam de chá, daí sempre se acha para vender. Em vez de açúcar usávamos um pouco de mel, uma bala. Usávamos até pão para imitar açúcar pois depois de molhado fica adocicado. Havia um enorme tráfico de pão, pão fresco, pão seco, pão de todas as cores, com ervas, algum tempero, um pouco de cebola, fazíamos sopa de pão, torta de pão.

Nos Estados Unidos, só morou em Nova York?

Não, além de visitar o país inteiro morei uns meses em Washington, em 1966, como artista residente do Smithsonian.

Deu-se bem, lá?

Fui muito bem tratado, mas detestava Washington e toda a sua hipocrisia, a hierarquia política, odiei a mascarada. Conheci todos os personagens da vida política da época e as mulheres que eram mais detestáveis ainda. Só sabiam a etiqueta de receber e o que se fazer nos jantares, mas não cozinhavam nem comiam, não seria próprio, era contra as regras.
Tomei parte em jantares importantes com todos os rococós adequados, convites, o nome de cada convidado escrito por calígrafos especializados para indicar o lugar de cada um à mesa. Na entrada, havia um diagrama de mesa com a distribuição de lugares de modo que todos soubessem quem estaria à direita e à esquerda, ficando os cavalheiros obrigados a acompanhar ao salão a senhora que lhe era designada. A da direita ou da esquerda? Já não me lembro mais.

Bom, deveria ser realmente um mundo muito novo para o senhor.

Foi bom. Aprendi a comer com muitos garfos, com muitos copos, a não beber a lavanda, a não comer certas verduras e frutas da decoração, e não pegar a maçã da boca do leitão.

Pelo jeito não gostou nada. Deve ter sido até um pouco esnobado por lá. O senhor morava em casa ou apartamento?

Casa, belíssima, maravilhosa. O cozinheiro era chinês e preparava coisas ignóbeis. A pior bisteca que já comi. Um cozinheiro chinês que cozinhava mal! A mesma coisa que um sueco baixinho. Eu só lhe pedia ovos cozidos e torradas.

Alguma coisa o impressionou muito na cidade?

O papel de carta do Smithsonian. Fiz todos os meus desenhos da época nele.

E Nova York, depois de tudo tornou-se a sua cidade, não?

Ah, como adorei a cidade, foi minha maior musa. Ficava doido com seu colorido, sua vida latejante, seus prédios, seus reflexos. Isso, na hora que cheguei. Depois assisti a cidade se deteriorando e perdendo muito do seu primeiro encanto.

COMIDA DE RESTAURANTE

E o que achou da comida, dos restaurantes...

Bom, nos Estados Unidos é diferente. Não tem nada a ver com o resto do mundo. Ainda são bárbaros em matéria de comida, imagine! Se você perguntar a um sujeito, na rua, onde se pode achar um bom restaurante nas redondezas vai pensar que você é louco. Restaurante não é lugar de comer e sim de se divertir. E a restaurantes para todos os tipos de divertimentos. Namorar? Levar os filhos para almoçar? Impressionar alguém? Almoço de negócios? Um diner, é um diner, é um diner. Comida gordurosa, comida frita e as crianças gostam. E se as crianças gostam, o americano adulto também gosta. Eles conservaram o paladar infantil. E as crianças americanas só comem cachorro-quente, hambúrguer e macarrão com almôndegas, tudo bem mole e encharcado de molho ketchup e mostarda ruim.

Por que será que se formou este gosto num país cheio de bons ingredientes frescos?

Bom, são forçados a comer desde pequenos pela mãe. Depois pela escola que tem merenda grátis. E podem comprar também na cantina doces horríveis, pizzas, hambúrgueres e sorvetes. Fora da escola comem também e bebem em latinhas com três canudos jogando tudo na calçada quando acabam de comer. Caixa, lata, enfim, como vacas que deixam cair a bosta no pasto.

O senhor implicou mesmo com os modos americanos de comer. Deve ser um reflexo de sua infância mais pobre, reprimida, educada, obediente. Onde só se dizia não para as crianças.

Pode ser, mas vivi na Itália e a preocupação com a comida era bem diferente. Sabiam apreciar o que era bom, os restaurantes tinham comida simples, mas muito boa.

Os Estados Unidos também tem ingredientes excelentes.

Mas é diferente. Em Cincinatti estive num grande restaurante e a atração era uma pista de patinação no gelo. Um patinador segurava uma bailarina pelas mãos e a fazia girar, cada vez mais rápido, com os patins voltados para a minha boca aberta, ocupada em comer. Isso era um restaurante, imagine! Músicas, variedades, iluminação especial, nem um único momento de sossego para comer. Se o cliente pedia uma salada, vinham folhas como as de uma enciclopédia velha, ou das páginas amarelas. Os pratos de carne eram todos iguais, mas parece que ninguém se importava.

Mas já havia restaurantes franceses na cidade quando se mudou para lá. Experimentou algum deles?

Quando tinha meu estúdio na rua 60 via da janela dois restaurantes, o Veau d´Or na 60, e outro restaurante francês, na 61. No meio, no pátio interno, havia uma cozinha que servia aos dois restaurantes e os cozinheiros eram chineses. Mais tarde íamos muito ao Del Pezzo, todos nós, escritores, artistas, todo mundo que queria saber de alguma coisa e comer barato.

Sei que o senhor se hospeda nos melhores hotéis europeus e que sabe comer bem. E sempre se deu mal com a comida americana?

A única refeição boa é o café da manhã. Quando viajava eu pedia o café da manhã mesmo ao meio-dia ou à noite. Torradas, ovos e presunto ou bacon, muito bem preparados com guarnições deliciosas de batatas home fried com bacon e cebola ou de batatas fritas que são cobertas de ketchup. Não se encontra presunto cru, mas o cozido tem tantas variedades: presunto de Virgínia, com abacaxi, presunto defumado do sul, lombo canadense, que é um meio termo entre o presunto e o bacon. E ainda as salsichas, os waffles crocantes, marcados a ferro quente, que parecem o traseiro de alguém que ficou sentado por muito tempo.

VIAGENS

Antes de ler sobre o senhor jamais soube que havia estado no Brasil e que sua primeira capa havia sido a de uma revista brasileira, "Sombra". Bonita capa com sol de arder, a praia e um sorvete.

É verdade, fui ao Brasil, e quando voltei todos queriam que eu falasse em injustiça social, em clima, em arte, como se eu fosse a revista "Time", que eu falasse qualquer besteira destas que lemos e pensamos que é a realidade. Imaginem, num dos dias que passei lá, numa praia, vi uma galinha que se havia raspado numa cerca recém pintada, e o que vi de mais essencial e bonito no Brasil foi essa galinha verde.

De todos os lugares que o senhor visitou no Brasil, São Paulo, Aparecida, Rio de Janeiro, Petrópolis, Salvador, Manaus, Belém, Recife, Natal, só não entendi a visita a Aparecida do Norte. Cumprir promessa é que não foi...

Ah, imagine! Fui ver os votos, uma coisa repetida, meio obsessiva como meus desenhos em série.

Mudando de água para o vinho, ou para o LSD, nos anos 1960. Todos descobriram o LSD. E o senhor foi convidado para uma experiência.

Verdade. Providenciaram para mim discos de Ravel, Debussy e Chopin, lápis e papel. Preferi ficar sem música e sozinho no quarto. Não me lembro bem da experiência. Sei que havia um coati da América do Sul na sala de visitas, coati de verdade, não foi alucinação minha. Brinquei um pouco com ele e depois fui passear pela mata, à volta da casa. Não me lembro de quase nada a não ser que entendi perfeitamente o que eram as árvores. Nunca havia pensado nelas antes. Dois meses depois já começaram a aparecer árvores na capa da "New Yorker". Árvores steinberguianas, imagine!

Agora, para finalizar, vou fazer como a Marília Gabriela e pedir que o senhor nos deixe com alguma frase ou poema, ou citação.

Pois não, falando ainda em comida, é claro. O rosto do Mickey Mouse não tem sexo, não é branco nem preto, não tem caráter nem idade; para mim representa a junk food dos jovens mimados, que têm todas as suas experiências, por mínimas que sejam, entregues a eles num prato feito.

E uma receita fácil?

Uma italiana. Do Aldo. Ferva uma tigela de água por pessoa, ou um pouco mais. Jogue dentro uma alcachofra por pessoa, sem
as folhas externas mais duras, sem o feno, e cortada em oito pedaços cada uma. Deixe cozinhar com sal e sirva com um
pouco de pimenta-do-reino e azeite de oliva virgem.

(A exclamação repetida "imagine" é um cacoete do desenhista.)


Endereço da página: