Folha de S. Paulo


Kkkkkkk

É aquela coisa de sempre. Temos que falar de comida porque a coluna é de comida? Temos. Mas precisa ser de bife, sushi, feijão com arroz? Não precisa, Já tem bastante foto de bolo, de doce de todo o resto. Podemos comentar as últimas tendências dos restaurantes, o corpo da mulher moderna, as influências da comida dos imigrantes, tentar pensar o que acontecerá com os food trucks, com os mercados ao ar livre, as feiras, os críticos brandos, os excessivamente críticos, há blogs excelentes, sem número, há cursos em universidades que jamais abririam suas portas para nós.

Podemos aprender a tirar fotos de comida, podemos ver crescer a coleção de potes da Calábria do homem de cara brava no avatar, mas, que bom entender tanto de jóias como a Sarita Borboleta que nos mostra uma por dia.

E agora falar mal do Face pegou de um jeito que, mesmo nós que usamos, que todo dia vamos colocar lá qualquer coisa no desejo talvez ingênuo que alguém se interesse pelo mesmo que nos interessamos... que até nós, usuários, temos dúvidas sobre seu uso, sabemos de suas fraquezas, não digo só do face, mas de tudo que anda on-line. Uns dizem que mata, que emburrece, outros dizem que dá vida, que nos faz mais rápidos de pensamento, o que nos leva a crer que ninguém sabe ainda a que veio essa facilidade de comunicação. O que é afinal? Um telefone novo, é uma televisão, é uma praça de namoro, é uma mesa de jantar, é a loja de comprar, vai nos levar para a frente ou para trás?

Quando entrei no Face também me assustei. Era todo mundo bonito, todos tinham saudade de um certo bistrô perto da Tour Eiffel, uma gente tão internacional, tão viajada, tão feliz!

Depois pensei que talvez não fosse todo mundo tão bonito e tão feliz. Mas quem é que escolheria sua foto mais horrenda, o acontecimento de vida mais trágico, para mostrar aos outros, quem é que conta suas misérias em público, mostra suas lágrimas, sua solidão, sua tristeza? Ninguém. Muito mais fácil colocar o bolo que se comeu, o doce de banana translúcido, a torta de maçã.

E exclamar "que fofo, que fofo, que fofo, kkkkkkkkkkkkkkkk".

Culpa nossa, falta de confiança na inteligência e discernimento do outro. Somos arrogantes. Achamos que só nós gostamos de ler aquele novo autor português. Que colocá-lo no Face seria bobagem, não vai haver quem possa trocar ideias com você sobre assunto tão cabeça.

Experimente. Vão aparecer dezenas de admiradores do tal português, o fofo do português. Se você só balbucia "kkkkkkk", o que quer que te respondam? E se os admiradores do jornal de papel imaginam a internet como o ninho dos imbecis, não seria melhor não tê-la, não usá-la? Onde estarão se juntando os imbecis hoje em dia? Na imprensa escrita, nos desvãos da web, ou os imbecis estão por toda a parte como sempre estiveram, ombreando com os bons, os generosos, os inteligentes, os estudiosos?

Tentemos fisgar alguém que se pareça com você nessas redes. É fácil, gente que se pareça é fácil. O complicado é achar quem não se parece nada e assim mesmo dê liga, e de repente são amigos, de verdade, confidentes, sentem a dor do outro, as alegrias. Ah, mas precisa fisgar na rede? Por que não como antes, olho no olho, a conversa rolando, os encontros incríveis se materializando todos os dias?

Como antes? Olhem que não me lembro dessa época. Sempre foi difícil encontrar a alma gêmea, o amigo, a amiga. Muito difícil. A faculdade tinha suas panelinhas, no clube havia outras, a humanidade nunca foi um brilho de entendimento e compreensão e carinho. Riem dos "amigos" do Face. É claro que ninguém se julga amigo por causa de dois gatos e três "kkk". Mas, tenhamos esperança, é um bicho novo que cresce, ainda sem rumo.
É possível achar na web aquele irmão de alma que tem um pé de jabuticaba e te convida para ir lá na época da safra negra subindo pelos galhos.

Interessante que eram vizinhos de bairro e nunca se viram antes, nem no ônibus, nem no Uber, nem cruzando a rua de bicicleta vermelha. Garanto, é mais fácil agora achar aquela mulher que como você já leu Flannery O´Connor três vezes, de trás para frente, de frente para trás. Quem entendeu e adorou e riu com o Jogo Infinito, quem adora Borges, quem entende de futebol como ninguém, quem pode te guiar através de um curso de Botânica, quem anda a pé na praça e quer andar com você.

Preconceitos à parte, por enquanto o Face é nossa ágora, nele podemos resolver nosso voto, aprender a última música, encontrar o amigo de infância, vender as mexericas orgânicas da fazenda. Nem todos são fofos, ou melhor até os fofos amam, kkkk. Por que não conhecer alguém que goste de tudo que gostamos, ou melhor, muito melhor, alguém completamente diferente de nós?

Não sei se ainda há ou vai haver a possibilidade de se voltar atrás com as mídias novas, achar que elas só geram imbecis, não sei. Não acredito, toda vez que simpatizei com alguém e me abri e não menti e acreditei no outro consegui amigos, enxerguei cozinheiros que cantavam, sommeliers que poetavam, poetas que faziam cadeiras de bambu, arquitetos apaixonados por cores e fractais, gente que escrevia muito bem, que lia muito bem, que cozinhava muito bem, que cozinhava muito mal, que aprendia as primeiras letras num recado, que confunde "mais" com "mas", "mal" com "mau", que como você e eu não sabe das vírgulas a metade, e dos acentos muito menos. Mas que de seu modo quer mudar o mundo.

Gente tão engraçada, cheia de humor e graça, gente brava pra caramba, é o mundo, somos nós, kkkkkkk.


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