Folha de S. Paulo


A comida segundo Macunaíma

Há muito tempo não lia Macunaíma e, ao assistir a aula final da Flip, dada pelo Wisnik, me entusiasmei e resolvi ver, sob o ponto de vista de nosso "herói sem nenhum caráter" qual seria a comida do brasileiro. A primeira leitura me desanimou um pouco, parecia que estava lendo Wasteland, Eliot, tantas referências desconhecidas fluindo pelo texto.

Da segunda vez já conseguia escutar a voz mineira de minha mãe, histórias de infância, jogos de brincar na calçada, canções de roda. Ainda falta muito para ser embalada por Macunaíma, mas a aula surtiu efeito e lendo mais vezes chego lá.

Ai, que preguiça. Procrastinador, Macunaíma acha o trabalho pesado, desagradável, há muitos meios de fugir dele, ele sabe quase todos, peripécias incríveis para escapar da faina de todo dia, do fogão, da lenha; mas o prazer, o gozo estão sempre presentes, ao alcance da mão, peitos e bundas de mulheres redondas, sedutoras, disso Macunaíma gosta e entende, aquele malandro que nem sabe quem é. Só pensa naquilo, que chama de brincar.

Mário de Andrade gostaria de misturar o Brasil inteiro num prato só. Cultura erudita e popular.

A Semana de 22 quer pensar um Brasil e por que não sua comida? Vou pesquisar e se alguém já fez a pesquisa, me manda, eu adoraria ver.

Passados tantos anos depois de escrito o livro tem muitas palavras que nos soam totalmente familiares e poucas que ainda nem conhecemos. Sabiagongá, guaiamum, biguás, caju, mandioca, urucum, milho, macaxeira, aluá, abio, sapota, paçoca de viado, tamarindo, açaí roxo, tucunaré, pirarucu, curimatá. Esse era o falar e o comer do nosso herói feio, índio preto, nascido de mãe sem pai.

Depois de gozar daquela comida fresca, daquele rio volumoso, das árvores que dão todas as frutas, dos cajás, mangas, abacaxis, abacates, jabuticabas, graviolas, sapotis, pupunhas, pitangas... do tacacá com tucupi, extrato de jenipapo, mungunzá, acaçá, o herói mata uma corça prenhe que é uma transgressão perigosa e resolve ir para São Paulo.

Mário de Andrade acha que o brasileiro não tem caráter, só sabe gozar. No sentido de que não possui uma civilização própria e uma consciência tradicional. Ainda não nos resolvemos, somos espertos, glutões, pouco honrados, improvisadores, não temos a menor ideia do que é a cultura verdadeira. Os peruanos, os mexicanos, os indianos, os chineses, por exemplo, já esperavam o conquistador com sua cultura própria, com sua comida experimentada e apreciada. E eram testemunhas do que haviam perdido materialmente, mas que ainda lhes marcava a alma.

Nós desrespeitamos a geografia, a fauna e a flora geográficas. Só nos interessa o prazer imediato, o índio é assim, o português é assim, o negro é assim, todos nós transplantados, tendo que inventar uma nova tradição. O mundo urbano começa a se agigantar, a se industrializar, a Pauliceia desvairada se enche de máquinas que são como bichos vistos pelo olho virgem da floresta de mosquitos, da saúva, do carrapato.

A cozinha francesa se nos apresenta como uma traveca enganadora, vestida de panos que não são nossos, pintada de carmins que desconhecemos. Macunaíma conhece o uísque, a Smith and Wesson, o macarrão, o queijo, mas aquela não é a terra dele, sente-se perdido no meio das polacas e ao voltar vê que o Amazonas também mudou. Quem é ele, não é daqui nem dali?

Que preguiça!!!!

O que escolher, qual caminho trilhar? O positivo que endeusa a mestiçagem e encontra nela, na sua tropicalidade, o bom e o justo?

Ou enxergamos o atraso, "se o Brasil se moderniza deixa de ser o Brasil, perde a experiência coletiva, pequena. Se continua Brasil não vence o atraso". Não sabemos fazer modelos, delimitar, é uma comida sem pai para se obedecer. Ai, que preguiça, inventar receitas, escrever livros, planejar. Queremos babar a gosma da manga, grudar os dedos na jaca, estalar no palato a jabuticaba. Brincar, transar, desperdiçar. Macunaíma vive por si, não imagina o futuro, não se organiza.

Qual a nossa identidade, o que nos representa, o que é esse enorme Brasil prenhe de potencialidades e pequeno, estreito de possibilidades?

Mário de Andrade queria saber, queria entender, queria ser o Brasil. Todas as nossas culturas são transplantadas. Quem vai nos ensinar? Ou nós podemos ensinar a eles? Ninguém é fundador, cada uma geme ainda e se entristece, tem que inventar, criar, fazer de novo.

Refazer culturas, curtir as perdas, lamber cicatrizes. Não há nada a ser defendido, tudo está para ser criado. Somos o cavalo onde baixará uma cultura nova, forte, ou a mesma falta de coragem e identidade correrá para sempre nas nossas veias, imitadores de culturas já quase prontas? Como Wisnik mencionou, "temos uma identidade ou somos uma entidade?"

Não resolvemos ainda o dilema. Somos uma cozinha brasileira sem projeto, engatinhando, indo para frente e resolvendo voltar atrás. Adoramos o que nos aparece de novo, logo enjoamos. Queremos ser criativos, inventivos, mas não sabemos ainda sustentar um projeto que na realidade nos represente. Isso é possível? Somos complexos, irresolvidos, imediatistas.

Quem de nós, mesmo sem saber, estará colocando em pé o projeto sustentável, no sentido de baseado, fincado no passado e com olhos no futuro? Que preguiça!


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