Folha de S. Paulo


Pra mim chega de inventar moda

Vergonha das vergonhas. Estou com indigestão do assunto comida. Não sei se é problema da internet, da TV, da nossa voracidade à cata de informação, mas as modas do comer estão se sobrepondo umas às outras, não dá mais para segui-las com juízo, pensando e experimentando, resolvendo o que é certo e o que deixar de lado. Para mim, pelo menos, não dá. Estão correndo demais, me deixando para trás.

O Ferran Adrià, que até que demorou no trono, foi esperto e à certa altura deu o fora, enfarado de ter que pensar uma coleção melhor do que a do ano passado, pois não era Karl Lagerfeld nem nada. Não há limites, cansamos da invenção de quinze dias atrás. Só não cansamos da comida da mãe e da avó –mas é preciso que ela própria venha em pó ou gelatina com uma nuvem de algodão doce por cima. Algodão doce preto que dá mais tchan.

Paz de criança dormindo é o que preciso pelo menos pelo tempo de me acostumar com alguma comida que eu possa chamar de minha, que queira voltar ao restaurante para comê-la, como se anseia por uma lasanha que não tenha substituídas as camadas de massa por palmito.

Não quero ir ao Noma comer camarão cru, morango verde ralado, tudo delicioso com cheiro de pinheiro gelado. Não quero mesmo.

Adoro beirada de pizza, mas não quero comer carvão, por melhor que seja, no restaurante de ninguém. Acho que a última gota foi o Dan Barber, com seu belíssimo restaurante que pode ser visto na Netflix, num documentário de foodies e comilões. Ele sugere, ou melhor, afirma, que está nas mãos dos cozinheiros moldar o gosto dos clientes, usar espécies nunca vistas, ajudar a fazer o mundo entender o entrelaçamento do elementos, a necessidade de se manter os ecossistemas....

O cozinheiro de peixes que ele mais admira cozinha com caroços de azeitonas, porque o calor que eles produzem é muito maior do que o carvão da madeira. Usa algas e fundo de rede, e seu espessante até há pouco tempo, para seus caldos deliciosos, era purê de olho de peixe. Os olhos de peixes têm 67% de proteína. O único defeito é que precisam ser usados nas primeiras horas após o peixe ser pescado, o que os inviabiliza. A bandeira dos mares é esquecer atuns, robalos, linguados e passar para o tamboril e a sardinha, que são tão gostosos quanto e nem estão na moda.

Pois é. Não aguento mais. É muita areia para o meu caminhão.

O que eu quero mesmo, sem me afastar da cozinha, é pegar uma faca boa, ou duas ou três, não mais, e aprender a usá-las. Nada me daria mais prazer do que esquecer todas as teorias e me botar a picar, cortar, afiar, no começo desajeitadamente, depois de olhos fechados, os quadradinhos e filetes se acumulando em morros de saudabilidade à minha frente.

Passo tudo para o cozinheiro, raspando a faca de leve sobre a madeira, plástico não quero usar, e começo de novo com um saco enorme de batatas, maquinalmente, sem pensar no mundo nem nos grandes chefs, rainha da arte de picar, milhões de tirinhas milimetradas se formando à minha frente. O que é, quem vai comer, não me interessaria nem um pouco. Sou um soldado obediente, cumpro até o fim a minha missão, não rio, não choro, não me machuco, os dedos dobrados sobre o cabo, a faca e eu, um ser só, simplesmente picando, descascando, sem pensar, sem falar, sem opinião, sem ler, sem estudar, máquina azeitada, obediente e ágil. Tique, taque, tique taque.


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