Folha de S. Paulo


Quase cego, ex-crítico Jean-Claude Bernardet investe na carreira de ator

"Precisa fazer cara de intelectual e olhar para o nada?", pergunta Jean-Claude Bernardet, 79, ao fotógrafo, quase rindo. Ele, que já escreveu romances e livros teóricos, foi professor da USP e da UnB e é considerado um dos maiores críticos da história do cinema brasileiro, quer fugir (pelo menos no retrato) do rótulo que é usado correntemente para defini-lo.

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"As questões de prêmios e títulos já são coisas para as quais não dou muito valor. A experiência é o mais importante. Você está vendo que eu não tenho nenhum troféu aqui", diz à repórter Marcela Paes, apontando para a estante do colorido apartamento de três quartos onde vive no edifício Copan, no centro de SP.

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Se tivesse o hábito de colecioná-los, o último a ocupar um lugar em sua prateleira seria um Candango, conquistado no ano passado no prestigiado Festival de Brasília. O belga de família francesa recebeu o prêmio especial do júri por sua atuação em "Fome", de Cristiano Burlan. No longa, interpreta um ex-professor universitário que vira morador de rua.

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"Depois de ter visto o filme, principalmente a última cena, eu passei mal. Porque vi essa figura envelhecida, num estado total de solidão. Pensei como consegui expressar isso. As pessoas acham que eu tive uma espécie de surto emotivo. Mas não."

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Uma cena específica trouxe maior dificuldade de realização e também chamou a atenção do público. Filmada no túnel debaixo da praça Roosevelt, ela traz Jean-Claude ilhado em meio ao tráfego, com carros nos dois sentidos. Ele empurra um carrinho de supermercado.

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"Fiquei totalmente obcecado por controlar o carrinho. Pensava: 'Tenho que controlar porque posso correr o risco de jogar esse cara [o câmera] na pista'", explica com forte sotaque francês.

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Jean-Claude deu uma guinada na já estabelecida carreira de crítico em 2009, quando participou como ator de "FilmeFobia", de Kiko Goifman. Foi motivado, no início, por dois fatores: uma profunda depressão e a vontade de se reinventar, ideia que compartilhava com o irmão, Jean-Pierre (morto em 2011 aos 73), que começou a carreira como executivo de multinacional e, depois de ser demitido, se tornou artista plástico.

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"A questão que eu e meu irmão nos colocamos é a longevidade. É tentar não viver essas décadas simplesmente como uma prolongação. Eu também estava me debatendo com antidepressivos e com o psiquiatra. Achava que os remédios não funcionavam. Comecei um processo pra me livrar disso até que veio o 'FilmeFobia', que me mudou. Saí daquela depressão."

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Apesar de ter participado apenas de filmes experimentais e de baixo orçamento, ele não descarta a ideia de atuar em um longa comercial.

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"Recentemente tive duas putas polêmicas com amigos. Disse que achava 'Até Que a Sorte nos Separe 3' e 'Chatô' filmes inteligentes. Eles discordaram. Às vezes acho o cinema que nós fazemos muito sisudo, desvinculado de uma realidade imediata. A arte que fazemos não é a única cultura interessante. Vou continuar e faço com empenho. Mas não somos os donos da cultura."

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Celeumas com amigos e conhecidos por opiniões cinematográficas não são novidade para o ex-crítico. Nos anos 1960, teve um desentendimento público com Glauber Rocha. O cineasta baiano chegou a chamá-lo de canalha em uma entrevista após uma crítica feita por Jean-Claude ao Cinema Novo.

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O fotógrafo propõe uma nova pose, "menos intelectual e mais divertida", e pede que Jean-Claude se sente de frente para o encosto de uma cadeira e jogue um chapéu na direção da câmera. "Você acha que isso vai dar certo?", indaga, entre resignação e desconfiança, andando na direção apontada.

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Três cliques depois, o ator já gosta da ideia. Ri e se concentra em acertar o alvo. "Acho que a gente forma uma boa dupla, mas da próxima vez podemos fazer com facas", diz, após lançar o chapéu umas 20 vezes.

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A agilidade do ex-crítico impressiona. Com a visão bastante comprometida e convivendo com o HIV há mais de duas décadas, Jean-Claude caminha e gesticula com energia. Em meio a jornais espalhados pela sala- que lê com o auxílio de uma lupa ou da assistente, Terezinha-, ele fala do problema nos olhos com naturalidade.

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"Minha rotina cinematográfica mudou, já não vejo as expressões dos atores. Vou ao cinema, mas prefiro filmes franceses e portugueses porque eu não falo inglês e não leio legendas. O melhor filme japonês que eu quisesse ver já está definitivamente fora."

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A dificuldade fez com que desenvolvesse técnicas para se virar sozinho. Descarta adolescentes e escolhe sempre mulheres com filhos ("mais cuidadosas") para usar como referência quando precisa cruzar uma via, amplia os textos que precisa ler e já decorou onde ficam muitos produtos no supermercado.

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"O Copan é meio que uma ilha. Parece que está no meio de tudo, mas na verdade tem a ladeira da Consolação, que tem que atravessar dois lados, a avenida São Luís do outro lado também tem duas pistas. E não vejo os sinais..."

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Assinou com a filha, uma meteorologista que vive nos EUA, uma carta que proíbe a prolongação da vida dele por meios artificiais. Segundo o termo, Jean-Claude não poderá ser reanimado nem entubado, por exemplo.

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"Muitos amigos de idade estão se tornando pessoas sonolentas e desinteressadas. Sem vitalidade, eu não estaria mais interessado em ficar aqui. O fato do [Oscar] Niemeyer ter vivido até 105 anos eu não acho nada invejável. Ele estava sendo transportado numa espécie de papamóvel. Talvez ele até achasse ótimo. Não sei resolver isso."

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Sobre o HIV, que está em seu corpo, "mas em quantidade tão pequena que não é detectado pelos recursos disponíveis nos laboratórios", escreveu um romance, "A Doença", em 1996. Homossexual, diz que nunca se sentiu estigmatizado por ter o vírus, mas viu "situações inacreditáveis" com outros pacientes.

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"Brequei isso do papel de vítima. Me diziam: 'Pô, mas logo você?'. Logo eu o quê? A situação é essa. Preferia que não fosse, mas, já que é essa, vamos viver assim."

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Para o ano em que se torna um octogenário, ele não tem planos de descanso. Quer continuar interpretando e participar do lançamento de filmes em que atuou. Também finaliza um romance, que, assim como outros que escreveu, é um híbrido entre memórias e ficção.

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"Minha impressão é que eu nunca tirei férias. Porque, mesmo que eu vá a uma praia, eu vou ler e anotar. Só que pra mim esse trabalho é a própria vida."


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