Folha de S. Paulo


O Big Bang da ansiedade

Um amigo costuma dizer que o verdadeiro Big Bang é nossa mãe. Entendo: o que somos pode ter tudo a ver com a expansão da matéria e o caráter ondulatório do universo, entre outras abstrações da astronomia, mas há mistérios igualmente profundos na genética para explicar como chegamos até aqui.

No caso de Scott Stossel, autor do recém-lançado "Meus Tempos de Ansiedade" (Companhia das Letras, R$ 59,90, 520 págs.), o enunciado do mistério é peculiar. Bisneto de um pró-reitor de Harvard que passou seus últimos anos em posição fetal, emitindo "sons inumanos" em casa ou num hospício, este jornalista americano bem-sucedido, casado e pai de dois filhos conta que há 35 anos, 2 meses, 4 dias, 22 horas e 49 minutos tem medo de vomitar.

A última vez que isso aconteceu foi aos seis anos de idade, no "início da noite de 17 de março de 1977". Stossel passou a década de 1980 invicto no quesito. Idem a de 1990. Idem a primeira metade dos 2000. E, no entanto, grande parte de sua existência girou em torno dessa fobia originária, que potencializou um então já arraigado transtorno e deu origem a outros —um "caso clássico", nas suas palavras, de horror contínuo e oportunidades perdidas.

"Meus Tempos de Ansiedade" segue os passos intelectuais e a experiência de neuróticos célebres, como Freud ("estômago nervoso" e pavor de trens) e Darwin (um "diário de saúde" com páginas intermináveis sobre fadiga, tontura, agorafobia e flatulência), além de dezenas de pesquisadores e pacientes.

Em termos mais contemporâneos, o texto tem algo do modelo consagrado por Susan Sontag nos anos 1970 e 1980: ensaio para o público não especializado que, a partir de um caso pessoal, dá a questões de saúde (ou científicas, stricto sensu) um caráter cultural amplo.

Com diferenças óbvias de limites e abordagem, é uma operação que não chega a ser estranha –pelo contrário— à melhor literatura de ficção. Nos dois gêneros, o que poderia ser um simples causo (o paciente narrando sua via-crúcis desde os primeiros sintomas) muda nossa visão sobre comportamento, história, política, linguagem.

Por esse motivo, além de outro um pouco menos elevado (hipocondria não é algo que se confesse alegremente no jornal), livros sobre doenças são uma de minhas predileções. Um cânone onde há tratados e memórias sobre câncer (Siddhartha Mukherjee), tuberculose (Thomas Bernhard), Aids (Hervé Guibert), cegueira (Oliver Sacks), mania (Andy Behrman), neurocirurgia (Henry Marsh) e um misto de variadas espécies de obsessão (Alison Bechdel, Nick Hornby, Nelson Rodrigues).

Mas foi em dois relatos que já nasceram clássicos, "O Demônio do Meio-Dia" (depressão) e "Longe da Árvore" (surdez, autismo, esquizofrenia, Síndrome de Down), ambos de Andrew Solomon, que pensei ao ler "Meus Tempos de Ansiedade". Como "Demônio" (Companhia das Letras, R$ 42,50, 584 págs.), o livro de Stossel traz um narrador que constantemente pergunta —sem encontrar respostas definitivas— a medida atávica ou ambiental de sua dor, no que ela se deve à evolução da espécie, à criação familiar ou às exigências da sociedade moderna.

Já de "Longe da Árvore" (Companhia das Letras, R$ 79,50, 1.056 págs.), "Meus Tempos" traz e discute a ideia de que doença e identidade podem se confundir. E que uma época com ojeriza às primeiras pode ser, também, uma época de rejeição às diferenças. Da eugenia nazista ao rolo compressor da indústria farmacêutica, que incentiva a criação de necessidades supridas pela própria ganância, a saúde total é um mito perigoso: em que ponto tratar a dor deixa de ser um alívio necessário e passa a ser a planificação de características que constituem nossa miséria e glória singular?

Definindo-se como "judeu neurótico e histriônico" dentro de um "wasp neurótico e reprimido", ou "Woody Allen preso em Calvino", Stossel nos oferece o rigor de sua pesquisa e o tom tragicômico de sua confissão. Ele sabe que há certo ridículo nas situações reiteradas e humilhantes que vive, e que o humor é um dos modos de extrair delas uma sempre possível afirmação individual.

Uma das definições (resumidas) da ansiedade é "antecipação temerosa de uma catástrofe insuportável", o que muitas vezes se soma a uma força paradoxal. Escrever um longo livro a respeito, incluindo os anos de expectativa quanto ao sucesso da empreitada, além da exposição sem pudor do próprio Big Bang, é uma coragem e tanto.


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