Folha de S. Paulo


Reino Unido se prepara para sair da União Europeia do jeito difícil

Daniel Leal-Olivas/AFP
Pro-European Union supporters and pro-Brexit supporters hold up placards during a demonstration against Brexit in Green Park in London on July 9, 2016. The British government on Saturday formally rejected a petition signed by more than 4.125 million people calling for a second referendum on Britain's membership of the EU. / AFP PHOTO / Daniel Leal-Olivas
Manifestantes a favor e contra o "brexit" em Londres

"'Brexit' quer dizer 'brexit'": ao mesmo tempo concisa e circular, a frase de quatro palavras nos diz muito sobre o estilo da primeira-ministra britânica Theresa May. No meu entendimento, isso quer dizer que, para May, o Reino Unido deixará a União Europeia, e não existe opção de um segundo referendo ou de que o Parlamento vete a saída. Caso isso se confirme, parece altamente provável que o resultado seja um "'brexit' duro".

Por "'brexit' duro" quero dizer não só uma saída da União Europeia, mas da união alfandegária entre seus países e do mercado unificado. O Reino Unido deve, no entanto, terminar com um acordo de livre comércio que cubra bens e possivelmente partes do mercado de serviços, acompanhado, seria de esperar, por arranjos liberais de viagem. Mas a liberdade das instituições financeiras instaladas no Reino Unido de operar na União Europeia desapareceria, e Londres deixaria de ser a capital financeira inquestionável da União Europeia. O Reino Unido e os países da União Europeia também imporiam limites à liberdade de trabalho de seus cidadãos nos mercados uns dos outros.

Não é esse o resultado que muita gente deseja. Como o governo japonês deixou brutalmente claro, muitas empresas japonesas que investiram no Reino Unido o fizeram pela crença justificada de que o país ofereceria base estável para comércio com o restante da União Europeia em termos tão favoráveis quanto os disponíveis para produtores de outros lugares.

Essas empresas estão compreensivelmente preocupadas com suas perspectivas. O mesmo se aplica a muitas outras cujos planos foram feitos com base na suposição de que o Reino Unido havia adotado uma política firme de se manter como parte da União Europeia.

O "'brexit' duro" prejudicaria esses planos. Caso o Reino Unido deixe a união alfandegária e assine um acordo de livre comércio com a União Europeia, regras de origem se aplicariam à exportação de bens britânicos para a UE. Esse procedimento burocrático padrão seria necessário para garantir que importações ao Reino Unido não se tornassem uma maneira de contornar a tarifa que a União Europeia impõe a parceiros externos. As regras de origem colocariam os exportadores britânicos em desvantagem com relação aos concorrentes baseados na União Europeia. O mesmo se aplicaria, especialmente, aos bancos, caso o Reino Unido deixe o mercado unificado.

Por que, então, um "'brexit' duro" se tornou o desfecho mais provável? Minha opinião se baseia na suposição de que o governo britânico atual não buscará reverter o resultado do referendo e se sentirá obrigado a impor controles sobre a imigração vinda da União Europeia, e a se libertar das regulamentação do bloco comercial e dos controles judiciais a elas associados.

Continuar participando da união alfandegária ou do mercado unificado, de fora da União Europeia, privaria o Reino Unido de autonomia legislativa. No primeiro caso, o país não teria liberdade para adotar uma política comercial própria. No segundo, teria de aceitar todos os regulamentos relacionados ao mercado unificado sem poder influenciá-los, manter o livre movimento de mão de obra e provavelmente contribuir para o orçamento comum europeu. Um país que rejeitou ser parte de uma organização não vai aceitar alternativa tão humilhante. Seria uma dependência ainda pior do que manter a participação na União Europeia.

A única alternativa razoável a um "'brexit' duro" seria ficar na União Europeia. O Parlamento tem o direito constitucional de ignorar o resultado do referendo. O povo também poderia ser consultado quanto a uma possível mudança de ideia. Mas os conservadores certamente terminariam tão arruinados quanto os trabalhistas caso tentassem reverter o resultado. A ala pró-brexit no partido perderia as estribeiras.

Certamente é possível, em termos lógicos, que a União Europeia altere seus termos de adesão. Poderia, por exemplo, mudar de ideia quanto ao status sagrado do livre movimento de pessoas. Caso o tivesse feito, o referendo quase certamente teria apresentado resultado diferente. Mas isso parece quase inconcebível agora.

Se o "'brexit' duro" for mesmo o destino, o objetivo deve ser chegar lá com o mínimo de danos para os dois lados. Alguns defensores do "brexit" propõe que o Reino Unido deveria revogar a Lei das Comunidades Europeias, em lugar de seguir o procedimento do Artigo 50. Isso representaria violação das obrigações que o país assumiu por tratado. Um desrespeito assim gritante a um tratado dificilmente seria um precursor produtivo para a negociação de acordos comerciais.

É essencial para o futuro do Reino Unido que o país passe pelo processo formal de negociar a saída. Mas, como aponta Charles Grant, do Centro pela Reforma Europeia, essa será apenas uma dentre seis negociações duras. As outras envolverão: um pacto comercial definitivo com a União Europeia; um acordo interino com o bloco, a fim de cobrir o período entre a saída e o acordo de longo prazo; o reingresso na OMC (Organização Mundial do Comércio) como membro pleno; novos acordos com os 50 ou mais países que hoje têm arranjos com a União Europeia, e presumivelmente com outros países, como os Estados Unidos e a China; e; por fim, a negociação de elos entre o Reino Unido e a União Europeia na política externa e defesa, policiamento e cooperação judicial, e combate ao terrorismo.

Não duvide: isso tudo vai demorar anos. Uma decisão de adotar o livre comércio unilateralmente, proposta por alguns partidários do brexit, simplificaria o processo. Mas não vai acontecer.

Em tudo isso, a negociação crucial, que acompanhará as conversações nos termos do Artigo 50, envolve os arranjos de transição para garantir que o Reino Unido não perca todo o acesso preferencial aos mercados da União Europeia ao sair.

Idealmente, a negociação deveria buscar uma forma de "mercado livre mais". O que esse "mais" significaria depende da flexibilidade dos dois lados, especialmente quanto ao livre movimento de pessoas. Na prática, deve significar não muito mais. Mas o governo do Reino Unido deveria declarar que não vai invocar o Artigo 50 até que a União Europeia concorde em negociar um acordo de transição que, idealmente, deveria ficar próximo do acordo final.

Esse resultado me agrada? Não. Para mim seria preferível um governo disposto a derrubar o resultado do referendo. Nada mudou minha opinião de que o Reino Unido está cometendo um imenso erro econômico e estratégico. O país será mais pobre e mais rancoroso no futuro. David Cameron ficará na história como um dos piores primeiros-ministros do Reino Unido. Mas o espaço intermediário entre ser membro da União Europeia e sair dela não é habitável. Assim, o que precisa ser feito agora é avançar rumo às novas e péssimas acomodações da maneira mais suave possível.

O Reino Unido escolheu uma autonomia em larga medida ilusória de preferência a ser parte da União Europeia. Isso tem consequências. O país terá de aceitar essa sombria realidade e agir o mais rápido que puder para descobrir o que o futuro lhe reserva.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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