Folha de S. Paulo


Reforma não basta como solução para a zona do euro

Será que as políticas econômicas do euro podem resultar em recuperação robusta? Minha resposta é: não. Já que a zona do euro gerou 17% da produção mundial em 2013 (a preços de mercado), essa resposta tem importância mundial.

Foi a Alemanha que ditou a estratégia econômica da zona do euro. Ela consiste de três elementos: reforma estrutural; disciplina fiscal; e acomodação monetária. Até agora, esse conjunto de políticas não foi capaz de gerar demanda adequada. No segundo trimestre de 2014, a demanda real da zona do euro era 5% mais baixa do que foi no primeiro trimestre de 2008.

Tanto França quanto Itália estão sendo encorajadas a acelerar suas "reformas estruturais", como forma de redespertar o crescimento em suas economias e, dada a importância de ambas, também na zona do euro. Os dois países respondem por 38% do Produto Interno Bruto (PIB) da zona do euro, ante os 28% da Alemanha sozinha. Nas duas economias, os programas recomendados incluem a liberalização do mercado de trabalho.

Os dois estão encorajados a seguir as "reformas de Hartz", que liberalizaram o mercado de trabalho alemão entre 2003 e 2005, e às quais o desempenho recente relativamente bom do mercado de trabalho alemão é frequentemente atribuído.

Mas uma coisa que essas reformas não fizeram foi criar demanda agregada dinâmica. Entre o segundo trimestre de 2004 e o segundo trimestre de 2014, a demanda interna real da Alemanha cresceu em 11,2%, o que representa ritmo anual composto de avanço de 1%. Poderia ter sido pior. Mas desempenho como esse dificilmente vale a um país a definição de "locomotiva".

O exame dos balanços financeiros setoriais alemães –as diferenças entre rendas e gastos do governo, do setor privado e das operações estrangeiras– reforça esse ponto. A resposta do setor privado alemão às reformas do começo dos anos 2000 foi aumentar fortemente seu superávit financeiro; ou seja, gastar menos que sua renda. Porque o deficit fiscal também encolheu, a saída de capitais disparou. Isso é notável, e significativo. Em resumo, a resposta do setor privado às reformas do mercado de trabalho e ao aperto fiscal foi adotar frugalidade cada vez maior e com isso acumular grandes volumes de ativos estrangeiros (muitos dos quais de baixa qualidade).

Em termos de elevação da demanda interna, as reformas conseguiram muito pouco sucesso. Pelo contrário: a Alemanha se tornou fortemente dependente da demanda externa. De modo semelhante, o aperto fiscal não provocou gastos mais altos do setor privado. Esperar que reformas do mercado de trabalho parecidas promovam a demanda na França e Itália provavelmente significará excesso de otimismo.

Isso não significa que as reformas nada tenham realizado. A Alemanha hoje tem baixo desemprego apesar do crescimento fraco. O Reino Unido também tem desemprego relativamente baixo a despeito de seu crescimento mais fraco depois da crise econômica. Em ambos os casos, as reformas das leis trabalhistas encorajaram o compartilhamento de um grande choque negativo por toda a população, em forma de rendas reais estagnadas ou mesmo em queda. Um sintoma dessa forma de ajuste é a baixa produtividade. Na indústria alemã, a produtividade não sobe desde 2007. O desempenho da produtividade também vem sendo fraco no Reino Unido. Mas o desemprego alemão era de 4,9% em julho, e o do Reino Unido de 6%, ante os 10,4% da França.

O que se pode extrair disso é que reformas do mercado de trabalho pouco, se alguma coisa, fazem por promover a demanda; no caso da Alemanha, boa parte da demanda veio do exterior. O que isso poderia significar para a zona do euro como um todo? Uma possibilidade teórica é que a zona do euro buscaria gerar superávit em conta corrente tão grande quanto o alemão, em relação ao seu PIB. Isso significaria um superávit não de US$ 300 bilhões, como em 2013, mas de US$ 900 bilhões.

E esse nível de superávit seria insustentável: o restante do mundo não o absorveria e a valorização do euro quase certamente o derrotaria. O complemento apropriado para a reforma estrutural é criar demanda adicional dentro da zona do euro. Isso é necessário, de qualquer forma, para eliminar as dificuldades que estão sendo criadas pela inflação ultra baixa e a possibilidade de deflação. A taxa básica de inflação alemã, de apenas 1,2%, é baixa demais para permitir que o ajuste funcione satisfatoriamente.

Com a política monetária convencional já esbarrando em seus limites, a escolha passa a ser entre política monetária heterodoxa e política fiscal expansiva. A Alemanha se sente extremamente desconfortável diante das duas opções.

Mas em parte por conta de sua situação como porto seguro, a Alemanha também é capaz de captar dinheiro a juros extraordinariamente favoráveis. O Bund (título do tesouro alemão) de 30 anos agora oferece rendimento de 1,8%. Se a suposição for a de que o Banco Central Europeu (BCE) atingirá sua meta inflacionária, isso significa que a taxa real de juros do título é zero. Custos tão insignificantes de captação devem transformar as opiniões sobre o custo dos deficit fiscais. A Alemanha deveria tanto refinanciar sua dívida, aproveitando as taxas vigentes, quanto fazer captação adicional para bancar investimentos públicos. O foco na dívida e deficit, desconsiderando a taxa de juros, é insensato. Da mesma forma, a atenção dedicada à possibilidade de que o deficit francês represente violação das normas europeias é absurda. Até mesmo os títulos franceses de 10 anos têm taxa de 1,1%. O mercado está praticamente gritando por maior captação.

O maior desafio para a zona do euro não é criar instituições, mas promover ajustes e restaurar o crescimento. Não se pode esperar paciência eterna da parte dos moradores da zona do euro. De fato, os perigos de manter a atual estagnação econômica são evidentes.

A Alemanha está certa ao acreditar que os Estados europeus precisam de muitas reformas em longo prazo. Mas a Alemanha está errada ao acreditar que isso possa bastar para gerar forte crescimento, sem medidas adicionais. Os indícios que sua experiência oferece quanto a reformas são decisivos, sobre isso: não é o que vai acontecer.

E tampouco faz sentido confiar em superávits externos cada vez mais altos, como substituto. Uma política que talvez funcione para a Alemanha isoladamente (e essa é uma alegação discutível) não poderá funcionar para uma economia mais de três vezes maior que a do país.

A zona do euro precisa chegar a um meio-termo entre mais reforma e mais demanda. Ao fazê-lo, deve reconhecer que a estagnação persistente é grande ameaça à estabilidade. A zona do euro precisa correr o risco da expansão. Esse se tornou o caminho mais seguro, agora.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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