Folha de S. Paulo


Negativa de Huck incita debate sobre valores familiares e sociais

Bruna Barros/Editoria de Arte/Folhapress

Como quem escreve é superior a quem só fala, a nossa vil política é oral de fio a pavio. Na política séria, escrever é expor ideias, articular argumentos, pensar. Em vez disso, raposão usual solta meia dúzia de frases capengas e fim de papo: levou os palermas no bico. Vide você sabe quem.

Por isso, foi notável a forma como Luciano Huck anunciou que não concorrerá ao Planalto. Poderia ter ejaculado um vídeo, arrotado uma publicação no Twitter, emitido uma eructação malsã qualquer. Optou por publicar, aqui na Folha, um artigo meditado e cristalino. Eis aí, até que enfim, algo novo.

O fato de Huck ter alinhavado uma série de raciocínios para justificar sua decisão faz com que ela não se esgote em si mesma. O artigo é um convite à sua análise, ao debate do papel do político e do mando num governo democrático.

O apresentador ilustra a recusa em pleitear a presidência com a "Odisseia". Conta que, como Ulisses, passou meses a ouvir dois apelos. Num lado, as sereias da política lhe davam uma cantada. Noutro, estavam "meus pais, minha mulher, meus filhos, meus familiares e amigos".

As sereias se deram mal. Os laços de afeto venceram porque são vistos como virtudes maiores desde Aristóteles. Desconhecidos dos animais, eles expressam a vontade de manter relações humanas autênticas. Repelem o egoísmo, o mesquinho interesse individual, e aspiram ao congraçamento.

São virtudes fofas. No plano político, porém, são tidas por irracionais desde Kant. A amizade viola o imperativo de se tratar todas as pessoas com igualdade, disse o filósofo da modernidade, porque a tendência natural é que se cuide melhor dos amigos.

Na política, a amizade serve de álibi para a concessão de regalias, que esgarçam a sociedade. Tanto que no Brasil a camaradagem entre amigos serviu de germe para o conluio de gângsteres. O mesmo se deu com os vínculos de parentesco.

Segundo a polícia, por exemplo, o ex-ministro Geddel e o irmão mocozaram uma bufunfa na casa da mãe. E três diretores da Odebrecht atestaram em juízo que Alckmin mandou o cunhado buscar parte de R$ 10,7 milhões na empreiteira.

(Uma sugestão de slogan de campanha, à la Brizola: "Cunhado não é parente, Alckmin para presidente").

Se a família é mesmo a célula mater da sociedade, estamos mal. Não importa, portanto, quem canta, se os próximos ou as sereias, e sim a consistência da música. Na República, aspira-se à impessoalidade da política e da lei, à igualdade entre os cidadãos.

Nas sociedades divididas, contudo, imperam o nepotismo, o compadrio e a desigualdade. A divisão está presente no livro 12 da "Odisseia", ao qual Huck recorreu para explicar o seu dilema.

Nele, a feiticeira Circe alerta Ulisses que ele jamais voltará para casa caso ceda ao canto mágico. É a bruxa quem bola o estratagema que lhe permite ouvir as sereias e se safar. "A orelha dos teus com cera tapes", aconselha Circe (na tradução de Odorico Mendes).

Ulisses se faz atar ao mastro e ensurdece os marinheiros. Ordena que, caso tente se soltar para seguir as sereias, sejam reapertados os nós que o prendem. Ele escapa das safadas. Mas tanto o herói como a tripulação foram mutilados.

Os marujos foram proibidos de usufruir a beleza sublime. Ulisses pôde desfrutar da maravilha, mas a custo da auto repressão que se intensifica quando tenta se aproximar do prazer.

O poderoso Ulisses, o rei de Ítaca que dá ordens porque é dono do navio, não é livre para fazer o que deseja. Nem ninguém o é na sociedade onde uns têm e outros não, onde uns mandam e outros obedecem. É o que dizem Theodor Adorno e Max Horkheimer no livro "Dialética do Esclarecimento".

Na analogia de Huck, as sereias o chamam para a política, na qual deixará de ser o astro que ganha milhões. Seus familiares e amigos, surdos aos encantos de Brasília, evitam que empobreça.


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