Folha de S. Paulo


A cegueira política mata mais do que o frio

Diante da notícia da quinta morte de um morador de rua em São Paulo por causa do frio, estranhei o silêncio em minhas redes sociais, sempre tão ativas, engajadas, prontas para defender minorias e injustiças sociais. Enquanto os sem-teto morrem, a prefeitura recolhe colchões e papelões para "impedir a refavelização das praças públicas", segundo o prefeito Fernando Haddad (PT).

Ainda que tenha gente com propensão à esquerda, ao centro, poucos à direita, a cada limpa acredito que no meu círculo não tenha espaço para homofobia, racismo, machismo. Também percebo que a maioria tem posicionamento parecido sobre pautas como a descriminalização do aborto, legalização da maconha, sobrando algumas divergências em relação à diminuição da maioridade penal, por exemplo.

Por isso, resolvi dar uma cutucada no silêncio e questionei onde estava o pessoal que ama o Haddad, tira foto com o Haddad, acha o Haddad gato, incrível, para falar alguma coisa sobre aquelas mortes. Eu nem voto em São Paulo, mas tenho simpatia por várias ações do prefeito –e também críticas.

Nem um pio. Nem um postzinho. Nem uma revoltazinha. Nem um link compartilhado. Nem um avatar em protesto. Triste. Tenho certeza de que a Paulista estaria fechada e lotada (com toda razão), se essas mortes estivessem sob a guarda do governo estadual, do PSDB. Fosse político de outro partido, ganharia um crachazinho de "higienista" da turba indignada.

A resposta veio por meio da deputada Luiza Erundina (PSOL), pré-candidata à prefeitura, que cobrou o prefeito Haddad em sua página no Facebook, sobre as mortes, sobre a ação da Guarda Civil Metropolitana e sobre a declaração do comandante da CGM, Gilson Menezes, de que a ação é para "evitar que o espaço público seja privatizado".

"É inaceitável que a maior cidade do país e terceira do mundo trate os seres humanos com tal crueldade, os pobres, como se fossem casos de polícia", escreveu a deputada.

Para total espanto, Erundina foi bombardeada por comentários indignados, não pela morte de cinco pessoas ou pelo descaso governamental, mas porque "Haddad não é o político a ser batido", "desestabilizar Haddad não é o caminho, servirá apenas para dar vez a candidaturas reacionárias", "isso sempre existiu nas gestões dos prefeitos anteriores", "essa campanha de ataques ao Haddad foi o que me fez de desistir de me filiar ao PSOL", "impossível a qualquer ser humano vigiar a conduta do todo servidor público o tempo todo", "leve os moradores de rua para sua casa, criticar é facim facim", "vir com pedras atacando o prefeito mais visionário e combatente da desigualdade social que SP já teve não é digno de um partido de esquerda".

A resposta para o silêncio entre amigos e conhecidos, além de parte da esquerda, que se vê, só ela, progressista, em relação a esse episódio lamentável, encontrou explicação em cada uma dessas declarações. Em bom português, dane-se que morreram cinco pessoas na rua, não vamos colocar essa culpa na conta do nosso político de estimação.

Não vamos cobrá-lo porque não queremos que ele carregue essa responsabilidade, em nome de um projeto, que é de ter no poder apenas o meu político preferido, apenas o partido que decidi ser o melhor, mesmo que ele seja responsável por coisas horríveis como a morte de cinco pessoas que pereceram porque lhes foi negado um bendito dum papelão que poderia ter evitado o pior.

Essa cegueira política, com contornos fascistas –queiram ou não, mata mais do que o frio. Mata as reais possibilidades de que se exija dos governos, sejam eles quais forem, o que for melhor para a população, em detrimento de vaidade (como dar o braço a torcer?) e posicionamento político.

De um lado temos eleitores que varrem para baixo do tapete declarações homofóbicas e machistas, potencialmente nocivas, de seus políticos preferidos. Do outro, aqueles que defendem que tem político corrupto bom e político corrupto mau. E como vemos agora, temos também aqueles que tentam a todo custo passar um paninho com alvejante no currículo de um prefeito que deixou pessoas, sob a sua tutela, morrerem de frio na rua.


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