Folha de S. Paulo


Encontro com o passado

Comida é algo que a gente não esquece. Lembro de refeições memoráveis, como a mais cara que já fiz na vida, sentada numa bancada para apenas oito pessoas do restaurante genérico do Jiro. Japa três estrelas do Michelan. Não consegui reserva com ele, fui no do filho. Dizem, é ainda melhor, ainda que menos famoso, mas igualmente caro.

Não me esqueço de que comia três vezes por semana num fast food mexicano xexelento quando passei três meses em Toronto, no Canadá, em 1998. Era perto da escola. Era o que cabia no bolso. E eu também sempre gostei de uma comida trasheira. Tenho um carinho enorme por aquelas fritas com chilli, que tinham aparência de vômito. Me pareciam deliciosas quando eu estava com fome.

Muitas coisas legais, que acontecem na vida, a gente não planeja. Eu tinha mais ou menos uma ideia de onde ficaria na minha estadia em Toronto, para cobrir o Pan pela Folha. O que eu não sabia é que abriria a janela do quarto do hotel e daria de cara com o prédio onde estudei a uns 300 metros de distância.

Lembrei na hora do Taco Bell. Acho que salivei. Acho que minha gastrite adormecida ameaçou despertar.

Assim que pude, lá fui eu subindo a parte da rua Young que tem as lojinhas mais vagabas. Salões de cabeleireiros, produtos feitos com maconha, portinhas minúsculas cheirando a incenso, sex shops, shows de sexo explícito, Subway, pubs sem glamour, bancos, sebos.

Nada de tacos e burritos. Fui e voltei umas três vezes pela quadra. Nada. Taco Bell virou uma loja de sapatos cafonas. Meio desolada e com a barriga roncando de fome e desejo, atravessei a rua e cheguei à esquina onde estudei. Que sensação estranha.

Continuei andando até Yorkville, um bairro chiquezinho com lojas bacanudas, restaurantes de verdade, homens de terno, mulheres de salto e bolsas caras. Parei meio perdida sem saber onde ir. Então, escutei dois jovens conversando. Tentando se entender num inglês escasso. Dois estudantes de línguas. Ele asiático. Ela... ela poderia ser eu.

Eu, há 17 anos. Ali bem na minha frente, falando como um índio. Sem conseguir conjugar um verbo, trocando palavras, colocando silêncio no lugar de vogais.

Fiquei observando os dois. Andei até a esquina e pedi mesa num restaurante. Jamais poderia ter almoçado num lugar desse há 17 anos. Pedi uma taça de vinho e um steak tartare. Jamais teria esse paladar há 17 anos.

Percebi que eu não era mais eu. E quem eu era? A gente nunca pensa isso. Quase nunca olha para trás. É assustador. Eu era uma garota que tinha muitas vontades e poucos medos. Fazia muitos planos e fazia tudo diferente. Queria tudo num dia e no dia seguinte queria tudo diferente. Então, tudo foi acontecendo além das minhas vontades. E elas foram ficando maleáveis porque as possibilidades eram enormes. Não sabia disso.

Então, você olha para o passado e já tem uma vida inteira lá trás. Vê de quanta decisão certa e de quanta cagada sua vida é feita. Foi legal fazer aquele mochilão na Europa, e foi um erro não ter passeado de gôndola com a minha mãe porque EU achei caro. Foi lindo aquele romance com Thomas, mas total perda de tempo com aquele babaca do Eduardo.

O que mais? Estou tentando me lembrar de todas as tragédias e arrependimentos que tenho. Queria poder dramatizar e dizer que me arrependo de muitas coisas que não fiz e escrever um texto inspirador sobre como viver todos os nossos sonhos. Mas não posso. Não consigo.

Talvez só agora eu tenha me dado conta de que a vida tem sido bacana e mesmo quando ela não é faz parte dessa coisa que se chama viver. Faz parte não ser a melhor do time, a mais popular da escola, não ter uma festa inesquecível de 15 anos. Não tive nada disso.

Faz parte ser demitido, ter chefes incompetentes, ganhar pouco, detestar o trabalho. Vivi tudo isso. Faz parte namorar caras filhos da puta, transar com babacas, sofres por sacanas. Tive um de cada.

Ainda bem. Talvez só assim o presente faça tanto sentido. Talvez só assim o presente seja um baita presente que eu ganhei do meu passado. Eu só estava procurando aquela velha loja do Taco Bell, na rua Young, mas o que encontrei fui eu mesma há 17 anos. Foi difícil. Mas foi bom. Matamos a saudade. Foi um alívio me reencontrar e saber que eu era uma garota como outra qualquer. E foi um alívio saber que eu fiz menos cagadas do que poderia.

Tive vontade de voltar lá e poder dizer pra aquela garota, que eu era há 17 anos, que tudo vai dar certo. Que depois do Taco Bell vem o steak tartare.


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