Folha de S. Paulo


Brasil, rei do camarote

Ao comentar, em artigo nesta Folha, a pronunciada inflexão que se anuncia para a política externa brasileira, o ex-chanceler Celso Amorim vaticinou: "as elites não terão mais nada a temer (...) O Brasil voltará ao cantinho pequeno de onde nunca deveria ter saído".

A imagem revela uma falha no sentido de proporção e também de movimento. Ela supõe, em sua trajetória de 2003 a 2016, que graças ao "projeto popular" e sua vertente de política externa, um gigante pegou carona no Cristo da "The Economist" que decolava do Corcovado rumo ao núcleo central das relações internacionais. E de lá, agora, corre risco de ser extraído.

Não é nada assim. O período Lula-Dilma, seja em termos econômicos ou estritamente de política externa, não lega ao Brasil um acervo de excedentes de poder, prosperidade e prestígio.

Representamos hoje os mesmo 2,7% do PIB global que nos cabia em 2002. Não quebramos a inércia do 1% que infelizmente é a pequena fatia que há décadas ocupamos no comércio global.

Será que, depois de "murchar" economicamente e seu "modelo" de crescimento com inclusão social mostrar-se uma decepção, o "soft power" brasileiro junto a América Latina e África continua o mesmo? Em ambos os tabuleiros, o soft power do dinheiro chinês é hoje o grande imã para a atração de filiações estratégicas, não a retórica brasileira.

Mas a frase tampouco é correta do ponto de vista da origem ou do destino do sobe-e-desce brasileiro na hierarquia das relações internacionais. O Brasil sempre é grande. E não estava num "cantinho pequeno" em 2002/3. Ao assumir a Presidência, Lula herdara alicerces de estabilidade macroeconômica e relações equilibradas com diferentes quadrantes.

Embora com os mesmo baixos níveis de comércio exterior como percentual do PIB, que historicamente gravitam em apenas 20%, dizia-se que a boa distribuição regional do fluxo de trocas fazia do Brasil um "global trader".

A diplomacia de Lula-Dilma não projetou, a bem da verdade, o país ao centro do palco. Nossos tradicionais ativos e potencialidades, de território, população, peso relativo do mercado interno e patrimônio ambiental, somaram-se a um conjunto de fatores positivos. A estabilidade macroeconômica herdada (e dilapidada) pelo lulopetismo, o bônus demográfico, o superciclo das commodities e a promessa de uma superpotência energética permitiram-nos acesso ao "camarote VIP" frequentado por potências emergentes.

De lá, equipado por uma boa estratégia de inserção global, poderia ter continuado a ascender, mas desperdiçou boas oportunidades que lhe passaram à frente.

No camarote VIP, o Brasil pouco fez por reformar-se internamente ou adaptar-se à globalização. Com a possível exceção da agenda global do meio ambiente e dos marcos para o desenvolvimento sustentável, o país pouco liderou. Os Brics, seja como sinônimo de classe de ativos ou plataforma de inserção global, não representam uma formulação "Made in Brazil". Tampouco o G20.

Dizer que de agora em diante o Brasil vai abandonar a "liderança" da integração latino-americana é uma bobagem. Empatias ideológicas e a multiplicação de fóruns regionais para a crítica aos males do mundo não são sinônimos de integração. Enquanto comprar uma garrafa de um bom vinho argentino for mais barato em Nova York do que em São Paulo, a integração não é para valer.

Curiosamente, Lula tinha uma série de intuições corretas para a política externa (e seus pilares internos) antes de chegar ao Planalto. Numa reunião na Câmara dos Deputados de junho de 2002, Lula informa aos parlamentares que, eleito, criaria uma Secretaria de Comércio Exterior diretamente ligada à Presidência da República. Não deveria ter em mente algo muito diferente do que agora se propõe como nova estrutura organizacional para o comércio. Promete também um reforma tributária para desonerar exportações.

E, num outro documento seminal publicado semanas depois (a "Carta ao Povo Brasileiro"), prega enfaticamente as reformas estruturais —trabalhista, fiscal e previdenciária— e conclama a investimentos em infraestrutura e respeito a contratos. Nada disso se concretizou em termos de reformas internas e política externa. O que se observou foi tão somente uma "guinada à esquerda".

A (má) gestão pública destes últimos 13 anos manifestou-se no âmbito da política externa sobretudo em termos de "diversão" e, no quadro macroeconômico mais geral, numa atitude esbanjadora.

Em vez de acordos que nos permitissem maior participação nas redes globais de valor, uma curiosa combinação de protecionismo funcional e multilateralismo de princípios. Em lugar de robustas estruturas de promoção comercial, a multiplicação de representações na África e no Caribe.

Numa entrevista à Folha em agosto de 2013, o economista Paulo Leme evidencia o caráter esbanjador: "a política fiscal está muito expansionista, o que aumenta a inflação e contribui para o deficit em conta-corrente. Em vez de gastar com hospitais, escolas, transporte público, o governo está gastando em salários, aposentadorias. Esse modelo está levando a uma despoupança doméstica, financiada por investidores estrangeiros. Se você toma empréstimos no exterior ou atrai investimento direto estrangeiro e, com isso, investe em indústrias ou atividades que geram receitas em dólares no futuro, o pagamento dos juros dessa dívida está garantido. No nosso caso, não, os empréstimos foram queimados com turismo da Disneylândia, malas cheias de bens vindas de Nova York ou Miami."

O que afasta o Brasil de uma maior centralidade no mundo contemporâneo seguramente não é a promessa de uma política externa mais pragmática e amparada no interesse nacional. Nossas potencialidades estão intactas. O que empurra o país para fora dos principais palcos são os equívocos de diagnóstico e atuação internacional e a corrosão de sua economia.

Enquanto esteve no camarote VIP, o Brasil teve, a um só tempo, os olhos do mundo sobre si e um excelente ponto de observação para antecipar tendências. Ao optar pelo acessório e o perdulário, comportou-se como o "rei do camarote" das relações internacionais.


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