Folha de S. Paulo


Anatomia da celebridade

O que faz um artigo científico ir parar na boca do povo? Não é fácil responder, mas quem se dispuser a isso pode contar com a ajuda da empresa britânica Altmetric.

Devo a descoberta a um artigo de Tom Bartlett em "The Chronicle of Higher Education", sobre o que pesquisas de maior repercussão pública revelam sobre nós mesmos. Bartlett usou a lista da Altmetric (www.altmetric.com/top100/2014/).

Não vale a pena detalhar a metodologia da empresa –há farta informação em sua página. Basta dizer que programas-robôs rastreiam um milhar de publicações do mundo (inclusive a Folha), sites, redes, blogs e microblogs. Parece tudo bem feito, ainda que não perfeito.

A lista é reveladora, assim como as reflexões de Bartlett. Aqui, o foco recairá sobre os dois trabalhos de brasileiros que figuram no ranking dos cem mais célebres, pelo que revelam das motivações que levam um estudo a se tornar destaque.

Logo no 14° lugar do ranking aparece um artigo com dois componentes irresistíveis. Um: trata de sexo. Dois: ainda por cima, sexo estranho.

O título no periódico científico "Current Biology" era quase apelativo: "Pênis Feminino, Vagina Masculina e sua Evolução Correlacionada em um Inseto de Caverna". Angariou 50 reportagens, 20 menções em blogs e 1.662 tuítes.

Esses insetos, do gênero Neotrogla, vivem só em cavernas do Brasil. Alimentam-se de fezes de morcegos. Só as fêmeas têm um órgão "intromitente" (ginossoma), coberto de espinhos, que recolhe espermatozoides e nutrientes do sêmen na "câmara genital" do macho. Copulam por 40 a 70 horas sem parar.

Na relação de notícias da Altmetric não aparece nenhum item em português. Uma busca na internet indica que as esquisitices não escaparam ao radar de Fernando Reinach, que escreveu sobre elas em "O Estado de S. Paulo" (que não figura entre as fontes da Altmetric).

Não encontrei na Folha menção ao inseto descrito por Rodrigo Lopes Ferreira, da Universidade Federal de Lavras. Nas revistas "Veja" e "Pesquisa Fapesp", sim.

No outro extremo da lista, em 82° lugar, aparece o estudo "Desfaunação no Antropoceno", da "Science", que tem como co-autor Mauro Galetti, da Unesp de Rio Claro.

"Antropoceno" é o nome dado pelo Nobel de Química Paul Crutzen a uma nova e controvertida época geológica, a Idade do Homem.

Uma de suas marcas, que um paleontólogo de Marte poderia talvez discernir no registro fóssil daqui a milhares de anos, é a sexta maior extinção de biodiversidade na Terra. Em cinco séculos, 322 espécies de vertebrados desapareceram, ritmo muito maior que a taxa natural.

Reinaldo José Lopes escreveu sobre o trabalho na Folha. Apesar de o jornal estar na mira da Altmetric, o texto escapuliu à atenção de seus robôs, que não a incluíram entre as 42 notícias detectadas (mais 18 posts em blogs e 322 tuítes).

Conclua o leitor qual das duas pesquisas é mais importante e qual só é interessante.

No melhor dos mundos, os Neotrogla estariam à beira da extinção, e seu exotismo ajudaria a "vender" melhor a notícia da extinção. Mas o melhor dos mundos, por definição, é precisamente o que não existe.


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