Folha de S. Paulo


Apontando o lápis

Se alguém ainda alimentava dúvida sobre a importância do tratamento correto dos números em jornalismo, a divulgação desastrada da mudança da banda cambial pela Rede Globo demonstrou que não se trata de brincadeira.

Apresentada como desvalorização do real, a notícia disparou como um buscapé. Antes que o Banco Central pudesse explicar que macaco não é elefante, a faísca da desconfiança alcançava o Mercado Global essa abstração capaz de atirar países inteiros na lata do lixo da história e os títulos da dívida brasileira chegaram a ensaiar uma queda em Tóquio.

O equívoco logo se desfez e não houve consequências mais sérias.

Esse é um caso extremo e raro. Dificilmente a imperícia no trato com cifras tem consequências tão imediatas e perceptíveis. É mais comum o jornalismo com números apresentar-se como Babel, não como Sodoma e Gomorra. O que deveria ser o domínio da clareza e da distinção termina como território da confusão e do diálogo de surdos.

Semana passada foi abordado aqui o problema quantitativo do desemprego. No plano da retórica, todos concordam em que é preciso fazer algo para combater a doença, mas não há acordo sobre o diagnóstico: febre, septicemia, câncer, epidemia?

Se a negociação em esboço não se fundar sobre o bom alicerce da crítica, corre o risco de começar e terminar como a campanha contra a fome: com uma cifra tão frágil quanto grandiloquente, e esquecida pelo Brasil que manda e lê jornais.

Desencargo de consciência

Um tema correlato ao do desemprego é o dos encargos que pesam sobre os salários. É o principal alvo na alça de mira apelidada Custo Brasil. A perplexidade sindical é o maior aliado de um governo eleito com o claro propósito de desmontar o Estado-empresário, para melhor submeter a sociedade à lógica empresarial da eficiência.

Nesse ambiente em que interesses corporativos se tornaram anátema, jornalistas ajudaram a popularizar um número-argumento tido como definitivo: no Brasil, os encargos sobre os salários representariam um ônus de 102% para o empregador.

Sem as necessárias explicações adicionais, disseminou-se a certeza de que um posto de trabalho com salário de R$ 100, por exemplo, custaria à empresa R$ 202.

Na última quarta-feira, um artigo do economista Demian Fiocca na pág. 2-2 da Folha demonstrou que o peso não tem esse tamanho (veja reprodução do quadro publicado com o artigo): o desembolso na realidade seria de R$ 146. Pode ainda ser muito, exorbitante, mas as contas apresentadas diminuem consideravelmente a margem comprimível das boas intenções político-econômicas. Nas palavras do articulista:

"Os encargos passíveis de redução que não significam perda direta para o trabalhador são a Previdência e as contribuições menores, de saúde, Sebrae etc. O restante, cedo ou tarde, ele leva para casa em dinheiro."

Dito de outro modo, quem defende redução dos encargos sociais aí incluídas as centrais sindicais precisa deixar claro a que pedaço da folha de salários se refere. Conforme a opção, estará defendendo também um corte na remuneração do assalariado. Não será a primeira vez que essa idéia aparece como a salvação da lavoura brasileira.

Publicar notícias econômicas, qualquer jornal consegue. Com um pouco mais de empenho do que vem empregando a Folha, pode até dar grandes furos.

Um jornal não estará porém cumprindo com sua função didática se não publicar mais textos capazes de desmontar as armadilhas conceituais e ideológicas camufladas sob os números pelas partes interessadas (não são só governo e empresariado que manipulam dados).

Mais ainda: esse trabalho crítico e investigativo tem de começar pela base, já na reportagem. A paisagem do jornalismo diário brasileiro sugere no entanto que essa função nobre vem sendo delegada pelas redações a colunistas e colaboradores.

Questão de vírgulas

Jornalistas costumam achar que detalhes não têm importância e não dão a devida atenção a coisas como zeros e vírgulas. A falta deste sinalzinho certamente prejudicou a deputada federal Vanessa Felipe (PSDB-RJ), mas não deve ter tirado o sono do redator que a pôs no lugar errado.

No excelente caderno especial "Olho no Congresso" de 14 de janeiro, o demo escolheu o rodapé da pág. 22 para se esconder.

Na coluna correspondente às faltas justificadas da deputada fluminense de 23 anos, aparecia o número 61. Ou seja, ela teria deixado de comparecer a 61% das sessões deliberativas da Câmara, uma quantidade exagerada para se justificar com motivos como viagem ou representação oficial e tratamento de saúde.

O correto era 6,1%, dez vezes menos. O jornal publicou a retificação sete dias depois, em 21 de janeiro, na seção Erramos. Era o mínimo que podia fazer.

Neste caso, ocorreu um erro de digitação no meio de uma tabela imensa, que não sofreu outras contestações do gênero. Pior é quando o erro é conceitualmente identificável, mas o jornalista deixa passar e ainda resiste a admitir a falha, atrasando em meses seu reconhecimento.

Uma outra vírgula foi deslocada na coluna Adrenalina publicada na Revista da Folha de 13 de agosto de 1995. Estava escrito ali que "os 20% mais pobres ficam com apenas 21% desse bolo" (a riqueza gerada no Brasil).
O erro era evidente a parcela apropriada não poderia ser maior que a dos apropriadores, se era de pobres que se falava e foi apontado pelo leitor Pedro Ney S. Pereira em carta ao ombudsman datada de 20 de outubro.

Foi pedida só em 6 de novembro uma verificação à Secretaria de Redação, como de hábito (a demora decorreu do envolvimento do ombudsman com a realização do 2º Fórum Folha de Jornalismo e Mídia). A primeira resposta recebida dizia que os dados tinham sido publicados pela própria Folha.

Depois de muitas idas e vindas, identifiquei com efeito, a partir das reportagens do jornal qual tinha sido o erro: a cifra correta era 2,1% do bolo, não 21%.

A descoberta foi comunicada à Secretaria de Redação em 7 de dezembro. O caso passeou mais um pouco pelos corredores do jornal e, com nova cobrança do ombudsman no último dia 12, o encalacrado erramos acabou saindo seis dias depois.

Veja o trabalho que uma simples vírgula e o descaso com a exatidão podem provocar.

Pedido de desculpas

Aos leitores que enfrentaram dificuldades para fazer contato com o ombudsman, na semana que passou, minhas desculpas. A bruxa andou solta entre aparelhos eletrônicos (computador e secretária eletrônica), quase paralisando o atendimento. Agora, tudo parece estar normalizado.


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