Folha de S. Paulo


O signo de Quixote

Depois de rebaixar o status de Plutão –injustiça que terminou, espero, sendo ignorada pela maioria dos terráqueos–, a União Astronômica Internacional está de volta no noticiário, com uma iniciativa bem mais simpática.

Promoveu um concurso para dar nomes aos planetas de novos sistemas solares, que continuam sendo descobertos ou adivinhados com animadora frequência.

Com isso, o repertório de nomes greco-romanos vai se esgotando, e já não fazia sentido se referir às novas descobertas como YK-323 ou coisa parecida.

A votação mobilizou 182 países, com 573 mil votos, batizando 14 estrelas e os 31 "exoplanetas" que as orbitam. Em alguns casos –coitada!– a estrela tem um único planeta, o que por um lado poderia facilitar a escolha do nome.

Seria provisório, claro, mas penso em "Sherlock" e "Watson" para um sistema solar tão exclusivista. Ou, se quiséssemos ser mais românticos, seria bonito "Paolo" e "Francesca", para lembrar os dois amantes que foram condenados por Dante Alighieri a turbilhonar eternamente no segundo círculo do inferno.

Penso em nomes literários porque uma das ideias mais felizes a emergir do tal concurso foi a dos planetas Quixote, Sancho e Dulcineia, girando em torno da estrela Cervantes: posso até imaginar que Sancho é menorzinho, e Dulcineia mais distante, enquanto no céu de Dom Quixote será preciso que gire, imensa, a constelação dos Moinhos de Vento.

Não teremos, portanto, somente os planetas que correspondem à imagem de deuses antes poderosos, mas próprios de cultos já extintos. Passamos da era clássica para a moderna, em que não mais o divino, mas o humano vem ocupar nossa atenção.

Que belos horóscopos não teremos! Em vez de Vênus e Marte, de Capricórnio e Touro, a influência de Sancho e do Rebanho de Ovelhas, de Rocinante e do Elmo de Mambrino irá reger a vida desses extraterrestres, submetendo-os às forças alternadas da preguiça e da obediência, da morosidade e da audácia, da gula e do sacrifício, dos ferimentos e da fama.

Nem todas as sugestões do concurso foram felizes. A Tailândia conseguiu tornar vitoriosos os nomes de Taphao Tong e Taphao Kaew, que na minha ignorância recebo com respeito, mas sem deixar de dizer que um mínimo de universalidade seria necessário quando se trata de sistemas solares.

Não se portaram muito melhor os eleitores suíços, que chamaram de Helvécia a sua estrela, com Dimidium girando em volta. Por que Dimidium? Quer dizer "metade", em latim. O planeta tem metade da massa de Júpiter.

Francamente. Se era para ser nacionalista, o eleitorado suíço poderia reservar para os planetas de Helvécia o nome de seus vários cantões. Ou, para ser suíço de vez, cada planeta teria de corresponder a uma hora do relógio; seria o sistema solar mais perfeito do universo.

Meio chata, mas inevitável, foi a opção dos holandeses, com a estrela Copérnico e seus diversos planetas-astrônomos, como Galileu e Tycho Brahe. Mas aí acho que esses nomes combinam mais com foguetes, sondas e satélites artificiais; a importância de Galileu está em observar, não em ser observado.

Com o tempo, espero, haverá lugar para todas as nacionalidades e seus mitos. Seria ótimo, quanto a nós, contar com uma estrela Macunaíma de verdade, a pequena e verde Muiraquitã rodando em volta (mas não deveria ser um cometa?) e, ao longe, maior que Júpiter, disforme e deserto, um Venceslau Pietro Pietra bombardeado pelo cinturão das Icamiabas.

Os orixás já são um sistema solar perfeito; Cosme e Damião, os Ibejis, seriam os melhores satélites que um planeta pode querer. E que atmosfera teria o planeta Iansã, a não ser a de um Carnaval sem descanso de relâmpagos, ventos e tempestades?

Cada país, cada religião, cada grande escritor já construiu dezenas de planetas. Depois de Cervantes, sobram escritores aos montes. E quantos deuses indianos ou japoneses dariam forma e caráter a planetas que nem sabemos onde estão?

Mal conseguimos, na verdade, explorar toda a riqueza que já produzimos. Que procuremos mais coisa ainda, na distância espacial, demonstra sem dúvida que constelação nos rege. Estamos sob o signo do descontentamento, com ascendente na curiosidade, no sonho e na aventura. É o signo de Quixote.


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