Folha de S. Paulo


Uma vida de obra-prima

Leio e releio o trecho de uma carta de Mário de Andrade, divulgado na quinta-feira passada, em que "finalmente" estaria resolvida a questão da homossexualidade do autor.

Como disse Alvaro Costa e Silva na página dois da Folha, os tais parágrafos –mantidos sob segredo há décadas– só revelaram "o zelo exagerado dos burocratas da cultura".

De fato, especulou-se muito sobre o conteúdo censurado, e a imaginação dos interessados foi muito além do que Mário de Andrade de fato escreveu.

"Está claro", diz ele a Manuel Bandeira, em carta de 7 de abril de 1928, "que nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto". A frase já estava nas edições da correspondência entre os dois escritores.

"O que se falava" de Mário de Andrade também era conhecido –basta lembrar da infame brincadeira de Oswald de Andrade, para quem o autor de "Macunaíma" era "muito parecido com Oscar Wilde", se visto "por trás".

Enfim, graças à iniciativa judicial de um jornalista da revista "Época" junto à Fundação Casa de Rui Barbosa (que desde 1978 detém a documentação, e resistia a liberá-la), o público tem acesso ao trecho sigiloso.

A meu ver, Mário de Andrade escreve, antes de tudo, para negar a importância do assunto; cartas, para ele, são testemunhos sérios demais para admitir confidências desse tipo. Cito o trecho.

"Em que poderia ajuntar em grandeza ou milhoria para nós ambos... eu elucidar você sobre minha tão falada (pelos outros) homossexualidade. Em nada." Acrescenta que há "muito de exagero nessas contínuas conversas sociais".

Em seguida, vem um trecho de difícil compreensão. "Num caso tão decisivo para a minha vida particular como isso é, creio que você está seguro que um indivíduo estudioso e observador como eu, há-de tê-lo bem catalogado e especificado."

Provavelmente, Mário de Andrade está fazendo referência aos que espalham rumores a seu respeito. Teria anotado direitinho quem disse o quê, em que circunstâncias... Estamos ainda discutindo, ao que parece, a questão dos comentários de Oswald de Andrade, que teria dado início a essas considerações de Mário.

"Se agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social (...)", diz Mário, "é porque se poderia tirar dele um argumento para explicar minhas amizades platônicas, só minhas."

Novamente, a interpretação dessas frases não é muito fácil. Em outras partes da carta, já publicadas, Mário discutia justamente o quanto era inexplicável, para ele, continuar amigo de Oswald de Andrade; "não é meu amigo, eu é que sou amigo dele".

Haveria nesse tipo de amizades alguma atração física recalcada? Mário de Andrade não acredita. "Escarafuncho bem e por mais que conheça e bote na linha de conta as tendências, os sequestros, as anormalidades, palavra que encontro amizades inexplicáveis."

Ele ainda pergunta se será amizade ou "desprezo" o que sente por Oswald de Andrade...

E é em passagens como esta, já bem longe do que se revelou nessa quinta-feira, que a personalidade de Mário de Andrade se apresenta em todo o seu fascínio.

Há uma capacidade de introspecção em suas cartas, uma honestidade de alma e uma inteligência que talvez superem tudo o que ele escreveu na poesia ou na ficção.

Que se possa, por exemplo, confundir amizade com desprezo... Eis uma verdade tão ou mais perturbadora do que a homossexualidade de Mário.

Não que a vida íntima de um escritor deva ser ignorada. A questão é saber o quanto interfere em sua obra. Se estivesse vivendo um drama tremendo a esse respeito, Mário de Andrade teria escrito outro tipo de livros, e teria tido outro tipo de vida.

Vale terminar com outro trecho da mesma carta, para ver-se que não era bem esse o caso.

"Mas que maravilha de obra-prima é a vida minha, Manu! Que riqueza de manifestações, que chama sem se apagar! um fulano danado de cético, que tinha chegado a um negativismo absoluto, que num momento da vida só achou, como tantos! que a solução única possível era mesmo acabar com essa m. de vida, que nem se lembra bem mesmo como foi possível reagir, e dum momento pra outro recobrou uma felicidade deslumbrante, felicidade de que foi rechaçada toda e qualquer conformidade, toda, mas completamente feita de aceitação e acomodação..."

Sexualidade parece ser um tema bem secundário para quem escreve essas linhas.


Endereço da página: