Folha de S. Paulo


Simenon sem mistério

Desde pequeno, sempre gostei das coisas lógicas e bem explicadinhas. Em matéria de romance policial, portanto, eu me atinha aos detetives clássicos, como Hercule Poirot e Sherlock Holmes.

Cada crime era um quebra-cabeça, e a grande emoção da leitura era chegar ao capítulo final com um misto de irritação e espanto: "Como é que eu não tinha pensado nisso?". "Da próxima vez, eu descubro!"

Com esse meu espírito, próximo ao de quem assiste a um show de mágica, os romances do comissário Maigret não me cativavam. Como se sabe, as investigações do famoso personagem de Georges Simenon (1903-1989) são caóticas, instintivas, acidentais.

Ele mais fareja do que pensa; pode ficar dias e dias esperando que alguma coisa aconteça, sem saber exatamente o quê. A sensação é angustiante, porque em vez de se acumularem pistas ao longo da história, as últimas páginas mostram um detetive tão desorientado quanto estava no começo.

Tudo acaba se resolvendo meio por intuição, meio por si mesmo; em vez da desmontagem perfeita de um mecanismo, a impressão que nos deixa o desfecho de um caso de Maigret é a de um fenômeno meteorológico. Depois de vários dias de chuva, o sol aparece (ainda pálido e encoberto), um pouco porque é da natureza das coisas que seja assim.

Na ausência de grandes proezas cerebrais, o que esperar de um romance de Simenon? Em primeiro lugar, o ambiente.

Estamos numa França provinciana, portuária, deprimida, entre os anos 1930 e 1950. O aquecimento das casas depende de muito carvão, as mulheres levam lenço na cabeça, as lojas são modestas, geridas por casais mal-humorados.

Há o mínimo de beleza possível –como se só existissem as portas dos fundos, os pátios fuliginosos e os elevadores pantográficos cheirando a graxa daqueles inúmeros prediozinhos promíscuos, onde os vizinhos sabem de tudo, e se calam.

O segundo atrativo nas histórias de Maigret é a qualidade, absolutamente torpe, dos criminosos. Não estamos diante daqueles assassinatos cirúrgicos, instrumentais, quase bem-vindos, que dão início aos mistérios de Ellery Queen ou Erle Stanley Gardner.

Os criminosos de Simenon são muito piores do que algum excêntrico gênio do mal. Eles nascem de uma estrutura familiar já pecaminosa, já asfixiante; o crime não é um acidente, está na própria natureza da vida doméstica. A mãe pode matar um filho para ficar com a herança, ou vice-versa; um irmão estrangula o outro e, ao contrário dos romances policiais antigos, entre vítima e assassino as diferenças não são tão grandes assim.

Cenário e personagens conferem, assim, "profundidade" às histórias de Maigret, para além do puro entretenimento cerebral. Há muita distância, entretanto, entre dizer isso e considerar Simenon um dos maiores escritores do século 20 –como garante o jornal inglês "The Guardian", na contracapa de um dos livros do autor que estão sendo relançados agora.

É a praxe: a cada reedição de Simenon (agora é a Companhia das Letras, depois da L&PM e da Nova Fronteira), reeditam-se também os famosos elogios que lhe foram feitos por autores da qualidade de André Gide e William Faulkner. A admiração insigne não se combina com o que há de meio improvisado, de quase indiferente na fatura desses romances que Simenon escrevia em velocidade industrial.

Mas a Companhia das Letras acertou ao publicar, logo numa das primeiras levas dos livros de Simenon, um romance em que Maigret não aparece.

Trata-se de "A Neve Estava Suja". Publicado em 1942, o livro vai longe na miséria moral dos países europeus sob a ocupação nazista. Seu protagonista, filho de uma cafetina, procura arranjar-se com os alemães, obtendo documentos que lhe permitam cometer alguns crimes sem ser incomodado pelas autoridades.

Não tem, na verdade, nenhum plano especial para enriquecer; move-se mais pelo desejo da impunidade do que pela vontade criminosa. Acima de tudo, Frank vive um completo desamor por quem quer que seja.

A prodigiosa indiferença desse personagem o coloca num plano próximo ao Meursault de Camus, e sua repugnante aliança com os alemães lembra a de Lacombe Lucien, no filme de Louis Malle.

"A Neve Estava Suja" é Simenon sem Maigret, e com um bocado mais de literatura. Pode ser bem acompanhado de um box de DVDs de filmes "noir" lançado agora pela Versátil. Mas isso é tema para outro artigo.


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