Folha de S. Paulo


Com Ashton Kutcher, 'The Ranch' desafia culto americano ao triunfo

Envernizada como mais uma de muitas sitcoms sobre família, com um ar que mistura filmes dos anos 70 com séries dos anos 1990-2000 e nenhuma pirotecnia, "The Ranch", que a Netflix estreou na última sexta (1º), entrega além do que promete.

Entre risadas de claque e o esperado reencontro de Ashton Kutcher e Danny Masterson (ambos egressos de "That 70's Show", na qual representavam respectivamente o bobalhão Kelso e o sempre cínico Hyde), há um estudo completo de "americana" —o conjunto de hábitos, costumes e produção cultural popular dos EUA—- e um drama intenso sobre a relação entre pai e filhos.

Talvez, porém, o elemento mais importante de "The Ranch" seja a dicotomia fracasso-sucesso, uma narrativa fundamental que norteia a cultura norte-americana, em toda sua crueldade e crueza.

Na série, Kutcher é Colt Bennet, um promissor jogador de futebol americano nos anos de colégio e universidade que nunca conseguiu de fato fazer a carreira decolar. Ele retorna, aos 34 anos, para o rancho onde vive a família, no Colorado, sem time nem troféus além daqueles conquistados na adolescência, a eterna promessa não cumprida.

A história do prodígio que não deu em nada, do astro mirim que naufragou, é recontada diariamente em uma sociedade que separa "winners", vencedores, de "losers", os derrotados, como se as duas categorias fossem sempre nítidas.

Quem duvida do poder dessa história pode passar alguns minutos ouvindo os discursos do presidenciável Donald Trump, no qual a palavra "vencer" martela ad nauseam, ou observar em qualquer livraria americana a extensão do catálogo sobre como obter o "sucesso".

Em torno de Colt/Kutcher orbitam o irmão, Rooster (repetindo o papel de cínico contumaz, agora sem óculos escuros e com sotaque), e os pais, o rancheiro embrutecido Beau (Sam Elliot, sempre excelente) e a bartender cabeça-aberta Maggie (a ótima Debra Winger, do clássico "Laços de Ternura").

É nas cenas entre Colt e Beau que os decibéis dramáticos sobem às vezes a um nível angustiante para uma autoproclamada comédia, explorando o mundo de expectativas mútuas, cobranças e amor mal digerido tão comum nesse tipo de relação.

Embora competentes nas tiradas cômicas, Elliot e Winger trazem à série a solenidade dramatúrgica que Kutcher e Masterson não são capazes de dar. Os rapazes, em compensação, ajudam a dar o lustro de sitcom e atrair um público mais jovem.

De quebra, há a sumida Elisha Cuthbert, a Kim de "24 Horas", como a namoradinha de colégio de Colt -e, louvemos, ela aprendeu a representar.

A Netflix e os produtores Jim Paterson e Don Reo (com quem Kutcher trabalhou em "Two and a Half Men") prometem a segunda temporada ainda neste ano, testando mais um formato distante do cronograma das redes de TV convencionais. Por ora, estão no ar dez episódios de meia hora da primeira. Tente.


"THE RANCH" está disponível na Netflix


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