Folha de S. Paulo


Nossa São Paulo: a OMG, o dromedário e o IPTU

"Você sabe o que é um dromedário? É um cavalo desenhado a partir de estatísticas da Rede Nossa São Paulo." A piada se refere à organização criada pelo empresário Oded Grajew, que durante as administrações Serra-Kassab funcionou como uma ONG (Organização Não Governamental) e após a eleição de Fernando Haddad (PT) tornou-se uma OMG (Organização Muito Governamental).

O primeiro sinal da submissão da entidade ao governo foi dado quando, após a posse, Haddad não incluiu no Plano de Metas a principal promessa de campanha, o Arco do Futuro. A lei de Metas, proposta pela Nossa São Paulo e aprovada com apoio do prefeito anterior, Gilberto Kassab, visa comprometer os candidatos com suas promessas de campanha. Ao engavetar a plataforma, Haddad desrespeitou o espírito da lei; ao aceitar sua decisão com silêncio obsequioso, a entidade desmoralizou a própria criação.

O corolário desse apoio, no entanto, veio ao final do ano, quando os diretores da entidade passaram a apoiar o aumento do IPTU, proposto pelo prefeito, derrubado no Judiciário. Tradicionalmente governos pedem aumentos de impostos e a sociedade civil resiste usando suas organizações.

Em artigo publicado na Folha (23/1), Oded Grajew escreveu que o aumento do IPTU era necessário para reduzir as desigualdades sociais na cidade: "A sociedade paulistana precisa fazer sua escolha: procurará pagar menos imposto e, consequentemente, colocará menos recursos para os serviços públicos (...), ou exercerá a sua cidadania (...) usando sua riqueza para ajudar a reduzir a desigualdade e oferecer qualidade de vida e bem-estar a todos os habitantes", diz a conclusão do texto.

O texto é cheio de armadilhas ideológicas vendidas como se fossem consensos lógicos. Desde logo, não se trata de "pagar menos imposto" ou dar "menos recursos para serviços públicos", mas evitar um aumento do imposto. Além disso, há um adoçamento retórico do que o texto efetivamente propõe: quando diz que "a sociedade paulistana" precisa escolher se usará "sua riqueza para reduzir a desigualdade", em verdade, propõe que "a sociedade paulistana" toda imponha mais sacrifícios àqueles que pagam impostos. O IPTU, como outros tributos no país, incide apenas sobre uma parte da sociedade: só 10% dos brasileiros pagam Imposto de Renda e só metade dos paulistanos, o IPTU.

O Brasil tem uma das maiores cargas tributárias do mundo. Mas só uma parte da população paga grande parte dos impostos. Então, essa minoria arca com a maior parte de uma carga tributária campeã mundial. É justo que ela dê sinais de resistência a mais impostos, como fez nas ruas em junho do ano passado e, agora, nos tribunais contra o IPTU? Essas formas de manifestação não são um sinal exatamente de que a "sociedade paulistana" já tomou uma decisão e está exercitando sua cidadania? Ou só é "cidadã" a parte da sociedade que diz amém para aumentos de impostos?

Os problemas do artigo não se concentram na conclusão. Em verdade, a ideologia contamina o texto do início ao fim, sempre em prejuízo do contribuinte paulistano. "São Paulo é a cidade mais rica do Brasil. Não obstante, apresenta vergonhosos indicadores de desigualdade e carência. Dos 96 distritos da cidade, 31 não possuem hospital, 38 não têm parque e em 44 não há uma biblioteca pública sequer", dizem suas primeiras linhas.

Então vejamos: um hospital deve ser referência ao atendimento de 300 mil a 500 mil pessoas. Cada distrito paulistano tem cerca de cem mil habitantes e a cidade toda tem 11 milhões. Portanto, um hospital atende a cinco distritos, aproximadamente. São Paulo tem 37 hospitais públicos espalhados por seu território, para atender 18 milhões de pessoas (mais do que a cidade toda). Um hospital como o M'Boi Mirim não é "do" M'Boi Mirim; atende vários distritos da zona sul. O hospital de Cidade Tiradentes também é "de" Guaianases e outros bairros da zona leste. A essa rede deve-se somar os hospitais sem fins lucrativos (Santas Casas, por exemplo) e os particulares que atendem o SUS. Não é, portanto, estranho que muitos distritos não sediem hospitais públicos.

A construção de um hospital custa aproximadamente o orçamento de um ano de todas as subprefeituras da cidade somadas. Depois, sua manutenção custa o correspondente a um novo hospital a cada dois anos. É por isso tão comum ver políticos inaugurarem hospitais e depois deixá-los degradar por falta de verbas: é mais barato construir do que manter esses gigantes. Pedir que todos os 96 distritos paulistanos tenham um hospital público é propor um imenso desperdício de dinheiro público. De onde sairia esse dinheiro? Do IPTU que a Nossa São Paulo quer aumentar...

E bibliotecas, faltam todas como menciona o texto? Também não: a estatística da OMG só considera aquelas que têm na frente uma placa escrito "biblioteca". Não inclui por exemplo as localizadas nos CEUs que são abertas ao público (foram criadas para isso).

Embora desde sua criação, em meados da década passada, a Rede Nossa São Paulo tenha sempre procurado amparar suas ideias em pesquisas, ela vive um relacionamento conflituoso com os números. Durante três anos, divulgou um dado errado (de que a prefeitura gastava menos com a periferia pobre do que com as áreas mais ricas da cidade). Baseado exclusivamente no orçamento da Secretaria de Subprefeituras, o dado esquecia todos os outros investimentos públicos (saúde, educação, meio ambiente, transportes...), muito maiores. Como as subprefeituras se dedicam a zeladoria e seu orçamento corresponde a cerca de 3% do orçamento da cidade, obras públicas em áreas da periferia carente superam o custo de jardinagem de todos os bairros ricos. A Nossa São Paulo só recolheu o argumento depois de três anos, quando Oded Grajew admitiu o erro primário em entrevista ao jornalista Milton Jung, da CBN.

Mas nem por isso os defeitos deixaram de aparecer. Anualmente, a entidade divulga que a maioria dos paulistanos quer ir embora da cidade. Como outras empresas fazem levantamentos semelhantes, muitas vezes (como já aconteceu com o Datafolha), o dado aparece invertido em outras pesquisas. Os sociólogos explicam a diferença dos resultados pela estrutura do questionário da Nossa São Paulo: sua pesquisa resulta em viés negativo forçado pelo conjunto da entrevista.

Em outras palavras, o efeito se deve ao fato de que, antes de serem pesquisados, os dados já têm um uso previsto: reforçar o discurso ideológico da entidade, mesmo que isso, vez por outra, maltrate os fatos. Ou, como agora, o bolso do contribuinte...


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