Folha de S. Paulo


Cruyff nunca abandonou a ideia de que era possível jogar para a frente

Morreu uma gigantesca parte do futebol. Morreu uma parte genial do futebol.

Seja no campo, seja no banco, raramente algum gênio da bola resumiu numa só cabeça, tronco e membros tudo o que o jogo bem jogado significa.

Johan Cruyff foi tudo isso e não há nenhum exagero.

Cada um de nós tem seus jogadores prediletos, seus estilos preferidos.

Há quem goste mais de Romário que de Tostão e o próprio Tostão gosta mais de Romário.

Há quem, entre a fantasia de Maradona e a eficácia de Messi, fique com a primeira. Ou com a segunda.

Imagine que o holandês que acaba de perder, ainda aos 68 anos, para um câncer de pulmão desgraçado pelo tabagismo, tenha sido alguém que reuniu a inteligência de Tostão, de Sócrates, com a frieza de Romário, a capacidade de surpreender de Maradona, o controle dos fundamentos de Rivaldo, quase, está escrito quase, a genialidade de Pelé.

Com uma vantagem sobre o Rei: como técnico pode-se dizer que é precursor de Pep Guardiola, a quem lançou no time principal do Barça ainda menino.

Coincidência ou não, Cruyff levou, no campo, o Ajax a dominar a Europa por três temporadas seguidas em 1971/72 e 73 e, no banco, o Barcelona em 1992. O clube holandês nunca mais chegou tão longe, e o catalão jamais havia chegado até então.

Vê-lo jogar era um deleite. Quando você pensava que ele estava num lugar, ele estava no outro. Às vezes parecia que ele virava o jogo para si mesmo.

Queria a bola o tempo todo e se desfazia dela com a rapidez possível.

No panteão dos maiores de todos os tempos é o primeiro entre os que não falam língua latina, porque tem vaga entre Pelé, Mané Garrincha, Lionel Messi, Diego Maradona, Alfredo Di Stéfano, Zinedine Zidane e os três Ronaldos. Escolha o lugar dele, só não vale o primeiro, de acordo com seu estilo preferido.

E não obrigue ninguém a repetir a frase de Fernando Calazans, "azar da Copa do Mundo", para quem seja capaz de dizer que Cruyff jamais ganhou uma Copa do Mundo.

De fato, o máximo que alcançou na única que disputou foi o vice-campeonato, em 1974, na Alemanha, ao perder a decisão para os anfitriões.

A exemplo, porém, do que acontecera 20 anos antes, na Suíça, com a Hungria, foi a Holanda dele quem entrou para a história do futebol bonito.

Como ele fez entrar para a história a camisa 14, numa época em que a 10 era tudo, como até hoje.

Sem papas na língua, jamais deixou de falar ou escrever o que pensava, de botar o dedo na ferida.

Criou, por isso, mil casos com sua paixão pelo Barcelona, onde jogou por cinco anos e dirigiu como treinador por oito, presidente de honra do clube que é mais que um clube, porque não perdoava momentos de mediocridade.

Não poupou Neymar, embora, depois, tenha reconhecido o equívoco e, certamente, morreu triste com a seleção brasileira, que o inspirou em 1970 e o traiu ao abandonar a fantasia.

Porque se havia uma ideia que não o abandonava era a de que é possível sempre jogar para frente, em busca do gol e sem maltratar a bola, filósofo do jogo bonito, sem o que o futebol não vale a pena, não seria o que é.

Mané Garrincha, Alfredo Di Stéfano e Johan Cruyff.

Que farra estarão fazendo estes três!


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