Folha de S. Paulo


Natal sem ditadura em Paris

Zeca Camargo escreve neste espaço na próxima edição

A primeira viagem a Paris a gente nunca esquece. Especialmente se você é jovem, e ela acontece no seu primeiro Natal fora do Brasil.

Meu caso: eu era jovem, era estudante, nunca tinha saído do país. Cheguei à França com primeira escala em Casablanca (o voo mais barato que encontrei), onde comi cuscuz marroquino (no Marrocos!), o primeiro de muitos que viriam depois, em várias estadias de bolsos vazios e restaurantes baratos na Paris que então me esperava.

Depois da etapa africana, pisei na Europa pela primeira vez na Espanha, de onde pegaria um trem para meu destino parisiense. Calculei mal os horários, errei o fuso horário e perdi o trem direto de Madri.

Tive que ir pingando (com uma dramática troca de trens na fronteira com a França, já que as bitolas dos trilhos não eram as mesmas) até chegar a uma Paris semicongelada: naquele Natal havia neve de verdade nas calçadas, nos parques e nos plátanos desfolhados que, pelas ruas, em nada pareciam com os pinheirinhos dos Natais brasileiros ornamentados com flocos brancos de algodão.

A bordo do meu precaríssimo francês, que descobri ser bem pior do que imaginava, consegui pegar o metrô e encontrar os amigos brasileiros que me aguardavam naquele 24 de dezembro, na aurora dos anos 1980.

Antes disso passei vexame na estação de trem por onde cheguei; não conseguia pedir um sanduíche de uma forma que os franceses quisessem entender. O mesmo se passou com os cigarros, cuja marca, com minha pronúncia, eles adoravam fingir não compreender.

Mas cheguei, arrastando a mala, até os amigos que me levaram a uma casa francesa onde celebravam a véspera do Natal. Não me lembro de ter visto árvores enfeitadas ou nenhum outro paramento de Natal –não sei se por falta desta tradição, se pela inclinação materialista dos anfitriões, ou por minha própria ojeriza a esses festejos, que talvez tenha apagado detalhes da memória.

E à mesa tampouco vi algo como peru ou leitão recheados: o que imediatamente chamou minha atenção foi uma enorme travessa com reluzente porção de salmão defumado cuidadosamente fatiado.

Na época ainda não existia essa espécie de frango cultivado em fazendas aquáticas mundo afora em que se tornou o salmão. Ao contrário, aquele peixe escocês era, para brasileiros, uma rara iguaria; mas ali estava à minha frente, em abundância, acompanhado de vinho nacional –champanhe, de verdade.

Começava assim uma aventura cujo tropeço seguinte aconteceu já na saída da festa: fazia tanto frio que a porta do carro não abria, a fechadura congelada.

O que não era nada. Ainda se passariam semanas até que eu reencontrasse um amor que, adolescente, precipitara minha aventura transatlântica ao se mudar do Brasil para a Itália. Naquela temporada ainda haveria intensas reuniões políticas do partido internacional que, clandestino no Brasil, onde nos esquivávamos minuto a minuto da ditadura militar, na França podia dizer seu nome. Que alívio poder ser trotskista a céu aberto (curioso, é a mesma liberdade que nunca faltou aos nostálgicos da ditadura que hoje tiram selfies com torturadores na avenida Paulista).

De forma fascinante, as semanas de inverno se tornariam uma primavera que pela primeira vez me deixaria extasiado ao perceber o milagre da nítida alternância das estações, que se escancarava no brotar das flores nos jardins de Paris ou na chegada de novos legumes na Pádua de Galileu Galilei –onde, tendo passado minha temporada italiana, comprei muito vinho de torneira nos bares para levar para casa, e bebi incontáveis litros de "graspa" (a pronúncia local para a famosa bagaceira italiana).

Tanta coisa nova e diferente aconteceria naqueles quatro meses em que estive fora do Brasil, e que começaram nesse primeiro Natal parisiense.


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