Folha de S. Paulo


Diário de Oxford - Capítulo 7

Todos conhecemos a obsessão dos ingleses com o estado do tempo. Eu próprio, que sou indiferente a variações climatéricas, tive que começar a escutar o boletim meteorológico de manhã para ter conversa o resto do dia.

Agora que estamos em janeiro, a saga continua. Mas com uma nova personagem em cena: a neve. A neve que não chega. A neve que vai chegar.

Diariamente, nas conversas banais, eu começo com o primeiro verso: "Está frio."

O outro, feliz por encontrar um cúmplice, responde: "E dizem que vai nevar."

Então olhamos os dois para o céu, silenciosos e tementes, em busca de um sinal redentor.

Não sei onde Beckett teve a inspiração para o seu Godot que nunca aparece. Mas não ficaria espantado se tivesse acontecido com as conversas meteorológicas que existem por aqui.

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Todos os dias compro jornais no mesmo "dealer": um muçulmano de ascendência paquistanesa que tem uma paixão desportiva por Cristiano Ronaldo.

Quando soube que eu era português, foi o delírio. "Eu sou do Manchester United", disse-me ele na primeira vez que visitei a loja. Depois, partilhou as "selfies" do celular: com Alex Ferguson, Ryan Giggs, Wayne Rooney.

"E Cristiano Ronaldo?", perguntei. "Não fui a tempo", confessou-me o homem, com um resignado encolher de ombros. "Quando tentei, ele já tinha partido para Espanha."

Assim se entende a delicadeza do seguinte episódio: entro na loja, dirijo-me ao balcão e, sem colete antibalas, pergunto se ele ainda tem algum exemplar do satírico "Charlie Hebdo" na sua edição histórica pós-atentados.

Ele olhou-me como se eu tivesse pedido um vulgar pacote de cigarros e replicou: "Deixe ver se eu ainda tenho algum."

Tinha três. Comprei os três: um para mim, dois para oferecer. Paguei a despesa do dia - cinco jornais, três "Charlies", quatro revistas - e quando saía da loja, voltei para trás. Só para perguntar: "Você não se sente ofendido comigo?"

Ele olhou-me com um sorriso aberto: "Meu caro, você acabou de me pagar 27 libras por jornais e revistas. Ofendido com quê?"
Razão tinha Voltaire. Abençoado seja o capitalismo.

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Não comprei apenas o "Charlie Hebdo". Também trouxe um exemplar da "Private Eye", que já não lia há séculos.

Explicação: a revista é uma verdadeira instituição britânica, que em tempos gloriosos publicou os diários de Auberon Waugh e que chegou a legar à língua nativa algumas expressões cifradas. Só para evitar que os tribunais ingleses explodissem com mais processos judiciais contra a publicação.

Uma delas ficou célebre: "tratar de assuntos sobre o Uganda". Quando alguém escrevia que o ministro X ou o parlamentar Y tinham estado algures a tratar de "assuntos sobre o Uganda", toda a gente sabia que os assuntos eram de natureza púbica, e não pública.

Na edição que comprei, a capa era inteiramente dedicada ao Príncipe Andrew, acusado nos Estados Unidos de tratar de "assuntos sobre o Uganda" com uma donzela menor de idade. Sob o título "Andrew - A Life in Pictures" ("Andrew - uma vida em fotos"), vemos o membro da família real, como se fosse personagem de revista em quadrinhos, em conversas ambíguas com personalidades diversas.

Uma das fotos oferece a rainha Elizabeth 2º, ordenando a um policial: "Coloque as algemas nele." Andrew responde: "Hmm, isso parece ser divertido."

Com a revista sobre a mesa, pergunto em modo retórico se uma capa destas, em chacota sulfúrica com a família real britânica, seria possível com a família real saudita. Ou, melhor ainda, com a teocracia iraniana e seus aiatolás.

Escusado responder: uma "Private Eye" iraniana teria o mesmo destino que os cartunistas do "Charlie Hebdo" francês.

Os eruditos podem discutir os massacres de Paris com as teses mais variadas. E alguns, antes da medicação matinal, podem considerar a liberdade de expressão uma ofensa "desnecessária" para mentalidades fanáticas.

Com a devida vênia aos eruditos, respondo com a capa da "Private Eye": se a família real se sentir ultrajada com a paródia, poderá apelar para os tribunais ingleses. O que não pode fazer é usar uma Kalashnikov para consumar uma matança coletiva.

Eis uma pequena diferença que separa o Ocidente da barbárie. E quem não entende essa diferença, o melhor é descarregar a neurose em lugares mais apropriados. Como o Uganda, por exemplo.

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Dizem as más línguas que os ingleses mantêm uma relação problemática com a higiene. Não creio que assim seja. Onde outros veem sujidade, eu reconheço um certo espírito panteísta no respeito pelo mundo animal.
Isso não se limita ao uso disseminado de alcatifas, que cobrem todo o tipo de espaços (banheiros inclusos) e que proporcionam aos nossos irmãos microscópicos a fundação e o desenvolvimento das suas respeitáveis civilizações.

O amor pela bicharada também está nos universos visíveis. Cheguei a Oxford em inícios de Outubro. Arrendei um apartamento. Com o contrato, foi-me garantida uma limpeza semanal.

E a senhora lá vem, todas as terças - mas sem nunca perturbar uma impressionante teia de aranha que continua, imperial, num dos cantos do tecto do quarto.

Durante uns tempos, ponderei eu próprio desfazer a teia. Controlei-me: se a dita cuja continua no seu lugar por desleixo (ou, quem sabe, por amor aracnídeo), resta-me a curiosidade de saber até quando a teia continuará no seu lugar.

Aceitam-se apostas. Eu, por mim, ainda lhe dou mais 2 ou 3 meses. No mínimo. Mas prometo relatórios regulares.

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A teia de aranha talvez tenha outra explicação. Que o diga Aggie Mackenzie, uma especialista em higiene doméstica, que na BBC Radio partilhou com o auditório a sua filosofia de vida: não perder tempo com limpezas desnecessárias.

Relata o "Daily Telegraph" que, no programa radiofônico, Mackenzie deu como exemplo a mudança de lençóis sempre que temos visitas em casa. Será mesmo necessário mudá-los, sobretudo quando o convidado seguinte é do mesmo sexo do anterior?

Talvez não. E a resposta é definitivamente negativa quando falamos de adolescentes: eles não distinguem uma cama limpa de uma cama lavada, o que não deixa de ser uma perene verdade.
Claro que, nas suas dissertações sanitárias, Aggie Mackenzie nada nos diz sobre a possibilidade de os convidados desatarem a tratar de "assuntos sobre o Uganda" durante a estadia.
Um esquecimento, estou certo, que será devidamente corrigido quando a sra. Mackenzie tiver a experiência de dormir em lençóis com uma textura, digamos, um pouco mais africana.

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Passo pela Igreja de Santo Aloísio - a casa do Cardeal John Henry Newman depois da conversão ao catolicismo - e um turista, de mapa na mão, faz-me uma pergunta tremenda: "Poderia dizer-me onde fica a Universidade de Oxford?"

Primeiro, julguei que fosse piada. Mas como o homem mantinha o rosto sério, respondi: "É tudo o que existe em volta."

O rosto sério deu lugar a uma exasperação séria. Refinei a explicação: a Universidade, em rigor, não existe - fisicamente falando. O que existe são os vinte e tal colégios que a compõem, cada um com autonomia própria e, em certos casos, áreas de interesse próprias.

O rosto do homem iluminou-se, como se tivesse pisado terra firme depois de meses à deriva: "Ah, os colégios são as faculdades!"

A medo, tento não partir o coração do cavalheiro. "Não, as faculdades são outra coisa. Também existem, mas são outra coisa."

O homem dobra o mapa, agradece a cortesia e depois, com o olhar derreado, entra na Igreja. Parece-me uma opção sensata. Quem sabe? Talvez uma intervenção divina possa desfazer o nó que se formou naquela veneranda cabeça.

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Os ingleses vão às urnas em Maio e ninguém acredita que Ed Miliban, o líder dos trabalhistas, seja homem à altura do serviço.

Discordo. Basta ler os jornais para medir a fibra política do cavalheiro: segundo relatos, Miliband terá discutido a Rússia - e as sanções a aplicar a Vladimir Putin - com o actor George Clooney e a sua recentíssima senhora.

Proximamente, não será de excluir que Rowan Atkinson, famoso como Mr. Bean, também tenha uma palavra a dizer sobre o assunto. O Rato Mickey, até ao momento, ainda não deu sinais de vida. Problemas de agenda, seguramente.

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Café da manhã no lugar do costume com a ementa do costume: expresso duplo e croissant. Mas hoje, ao chegar, deparei-me com uma oferta inusitada: croissant ou pastel de nata português ("Portuguese custard tart", na tradução)?

Angústia. Se o patriotismo é o último refúgio dos canalhas, ele às vezes é o dilema pungente dos expatriados. Estaria eu disposto a renegar a minha pátria, recusando o pastel de nata e optando pelo gaulês croissant? Estaria eu, verme e traidor, disponível para esquecer os meus antepassados, que morreram nas baionetas dos exércitos de Junot durante as invasões francesas?

Não contem comigo. Com orgulho e determinação, apontei para a vitrine dos doces e ordenei, como um general em plena batalha: "Levo um de cada, por favor."
Guardar ressentimentos históricos nunca fez bem a ninguém.


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