Folha de S. Paulo


Ainda o aborto

Hélio Schwartsman retoma a questão do aborto ("Entre a lei e a moral"; "Essências e embriões") e, nas interpelações que me dizem respeito, identifico duas.

A primeira lida com a dimensão penal do problema. Se Oscar Wilde dizia "manners before morals" (as maneiras antes da moral), Schwartsman começa com "penalties before morals" (as penalizações antes da moral).

Infelizmente, desconfio que a polêmica que o tema provoca não passa por uma questão penal (já lá irei) mas sim por uma questão moral: antes de qualquer sociedade redigir os seus códigos, é preciso saber primeiro aquilo que ela considera (ou não) aceitável de acordo com uma determinada concepção do Bem.

Claro que nem tudo o que uma comunidade considera majoritariamente "imoral" (o adultério, por exemplo) deve ter condenação pesada, excepto se falarmos de estados teocráticos sob inspiração da "sharia" (o Brunei é o mais recente exemplo).

Mas isso não significa que o Estado não deve estabelecer limites sobre matérias de vida ou morte. O adultério não é uma questão de vida ou morte (enfim, nas famílias mais civilizadas). O aborto é.

Afirma Schwartsman que os pró-abortistas olham para o feto como um "simples amontoado de células"; os antiabortistas, onde me incluo, falam de uma "vida humana".

Lamento, mas é com muita dificuldade que aceito a natureza redutora de ambas as definições. Aliás, existe uma interessante autora sobre o tema (a pró-abortista Mary Anne Warren) que introduz uma distinção semelhante entre "ser humano em sentido genético" e "ser humano em sentido moral".

O feto faria parte da primeira categoria, mas não da segunda: desprovido de capacidades como a autonomia e a comunicação, é possível ser um "ser humano" (geneticamente falando) sem fazer parte da comunidade moral. Donde, só seres humanos em sentido moral devem ter a sua existência respeitada e protegida pela lei.

Como é evidente, uma posição desse tipo poderia perfeitamente legitimar o infanticídio (apesar de Anne Warren o negar vigorosamente) e a morte de qualquer pessoa (adulta) que, por razões médicas, se encontre privada de "autonomia" e "comunicação".

É por isso que talvez seja mais proveitoso falar do feto como uma expressão de vida que, em situações normais, será um ser humano no sentido pleno da palavra. Mera questão de progressão natural.

Se assim é, voltamos à minha objecção primeira: o aborto, exceptuando casos radicais que põem em causa a saúde física e psíquica da mulher, começa por privar uma vida do direito a um futuro. Justificar esse "roubo do futuro" com a simples "autonomia" da mulher parece-me uma justificação insuficiente.

E a questão penal? Não discuto a legislação brasileira sobre o assunto, embora uma legislação antiaborto que não tenha em conta a saúde mental da mulher seja, digamos, bastante limitada.

Prefiro lembrar que é perfeitamente possível que o Estado sinalize o que considera lícito ou ilícito –proibindo a liberalização do aborto, por exemplo– sem a barbaridade de condenar mulheres que abortam à prisão. Até porque, em matéria de fanatismos, já temos o reino do Brunei.

*

Dicionário de português (3):

MOURA, Vasco Graça - Tempos atrás, escrevi nesta Folha sobre Agustina Bessa-Luís ("Agustina é o nome", 15/1/2013)). Melhor dizendo: sobre o desconhecimento de Agustina no Brasil, uma situação tão mais bizarra quando Agustina é talvez a grande escritora portuguesa contemporânea. Seria possível que, num país de 200 milhões de falantes do português, a maior romancista depois de Eça de Queirós fosse ilustre desconhecida?

Poderia formular a mesma pergunta sobre Vasco Graça Moura, desaparecido agora aos 72 anos. A primeira tentação seria dizer que Portugal perdeu o seu maior poeta.

Mas definir Graça Moura como poeta seria uma injustiça para um escritor total, que repartiu 50 anos de vida literária por todos os instrumentos concebíveis. Na poesia, certamente; mas também no romance, no teatro, na crónica e, claro, na tradução dos grandes clássicos do cânone Ocidental, a começar por Dante, Shakespeare, Racine ou Rostand.

Sem esquecer os ensaios: o seu "Discursos Vários Poéticos" (2013), volume que homenageia esse meio século de labor (uma homenagem organizada em Portugal por Maria Bochicchio), é uma síntese perfeita do fulgor ensaístico de Graça Moura.

Claro que, nas contas finais, é a poesia que emerge como feito maior. Desde logo porque Vasco Graça Moura soube aplicar um irretocável rigor formal à "experiência comum" das nossas alegrias e tristezas cotidianas. A poesia de Graça Moura é, para usar um termo caro a James Joyce, uma poesia epifânica: porque capaz de iluminar o que parece trivial, pessoal, familiar, com aquela luz que perpassa através da vida.

Nascido no Porto em 1942, a essa cidade deixou os versos que se seguem –e que merecem ser descobertos pelo Brasil. Tarde, é certo; mas ainda a tempo de um encontro essencial.

a mulher que vive ao pé do rio (2010)

a mulher que vive ao pé do rio
tem nos olhos a cor das águas quando o vento
limpou as nuvens devagar, sim, quando
a alma da cidade se tornou efusiva
rente ao coração dos que se amam
a mulher que vive ao pé do rio
tem uns olhos que se tornam verdes e eu
não sei dizer como esse olhar me traz
ainda mais preso ao porto, a exaltar-me
lá onde sobre reflexos dos barcos e das casas
se levanta a cidade com sua torre
vestida numa luz húmida e benigna
de sonho e de granito e eu
só vejo partículas dessa luz sentindo-se louvada
nos olhos da mulher que vive ao pé do rio
e elas povoam a minha alma e são
claros sinais para o coração rejubilar
com tudo o que viveu e aprendeu e mais ainda
com esses madrigais da luz reverberando
entre as águas do rio e os olhos dela


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