Folha de S. Paulo


Commedia dell'arte

Aguardo o horário da aula enquanto tento lembrar há quantos anos não esperava na porta de uma escola –talvez esteja velho demais pra isso. Ao meu redor, gente de sangue ruim: escritores, atrizes, dramaturgos, literatos, esfoladores de animais, atrozes jornalistas, mendigos falastrões, cineastas de projeto: "os queimadores de erva mais ineptos do seu tempo!" Tudo ali é jovem, estéril e cheira mal. Com a exceção da modorrenta segunda-feira, a calçada noturna dos teatros da praça Roosevelt sempre fede a maconha vagabunda, cerveja choca e suvaco.

Nego um, dois, três trocados, encontro com meu amigo John Turturro, saltamos sobre uma poça de mijo envelhecido e entramos. Numa das salas de ensaio da SP Escola de Teatro o diretor e dramaturgo Maurício Paroni começa um curso de Commedia dell'arte. Na verdade é um curso de Paronismo Exacerbado ou Pragmatismo Parônico através dos tipos desta forma teatral da Idade Média, cuja linguagem popular adequava-se a um tempo onde quase todos eram analfabetos e livros eram raríssimos. Mais ou menos como o Brasil em 2015.

(E, de fato, os tipos grotescos da Commedia dell'Arte não estão muito distantes de nós. Desde os vira-latas boschianos na calçada até os velhacos em Brasília, a impressão é a de que a realidade onde diálogos confundem-se com grunhidos ou bordões é a nossa. A diferença é que os excepcionais atores da Commedia dell'arte estudam o ofício. Ao representar a injustiça e a arrogância, transformam os poderosos em cópias desbotadas deles mesmos. A vida é melhor no teatro –antes ouvíssemos o grammelot chiado do Eduardo Cunha sobre um palquinho de província que no Congresso.)

O mestre Paroni usa chapéu de feltro, golas levantadas e echarpe, como um personagem de romance do século 19. Tem as meias levantadas no meio das canelas, as calças curtas pouco abaixo dos joelhos, o cabelo raspado na nuca. Seu impressionante carisma de Don Napoleão Corleone faz com que nenhum dos atônitos alunos jamais consiga desgrudar os olhos dele. Nem mesmo depois de voltar para casa e dormir.

Paroni metralha referências sobre Lacan, o preparo de pratos regionais italianos e correspondentes dialetos, passa por Dario Fo, Tadeusz Kantor, Bertold Brecht, vinhos de sobremesa, concertazione e corte cinematográfico. Sem precisar levantar da cadeira, dirige os alunos apenas com os olhos e a expressão do rosto. Aperta com a agulha exatamente o ponto da pedra que verte água. Seria um truque de mágica espantoso, mas como ele transforma a água em vinho no processo, é bem mais do que isso. Esses atores em construção não vão esquecer da experiência. Errar sem medo, estar profundamente acordado: a febre da paixão proibida, o olho arregalado dos moribundos e condenados. Porco dio!

Ao final, comeremos no Planeta's como fazem as pessoas de teatro –com preço de permuta. Beberemos vinho, trocaremos breves impressões sobre a existência, planejaremos viagens, nos permitiremos algum comentário exaltado sobre política e logo será hora de dormir, depois da saideira já acaba mais um dos nossos dias sobre a terra. "Menos um, menos um", caminho vagaroso pela Nestor Pestana, as mãos enfiadas nos bolsos vazios, bufando em silêncio e chutando pedrinhas, pensando que diabos estará você fazendo agora.


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