Folha de S. Paulo


Uma defesa do insulto

SÃO PAULO - No Brasil, o debate nem se coloca. Nenhum editor que eu conheço deixaria de publicar as charges do profeta Maomé, que tanta ira causam em alguns muçulmanos, para ilustrar uma notícia como o ataque ao "Charlie Hebdo". Penso que estão cobertos de razão. Sem as imagens, fica muito mais difícil entender o que está acontecendo.

Nos EUA e em outras partes do mundo civilizado, entretanto, órgãos de imprensa respeitáveis como "The New York Times", Associated Press e CNN evitam estampar os cartuns. O argumento utilizado é o da cortesia pública. Leitores devem ser poupados de material criado deliberadamente para ferir sensibilidades, sejam elas religiosas ou de qualquer outra natureza. Uma analogia possível é com a autocensura que, em algum grau, todo editor exerce ao escolher, por exemplo, quais fotografias de um acidente serão impressas. Em geral, as imagens mais fortes são excluídas.

Compreendo, mas não concordo. Obviamente, não defendo que a publicação de cartuns ou de tripas expostas seja obrigatória. Se um determinado órgão acha que escancarar a charge blasfema vai muito contra a sua personalidade, deve mesmo furtar-se a fazê-lo. É fundamental, porém, que, no cômputo geral da mídia, o público tenha acesso a tudo, por mais ofensivo que pareça.

O que está em jogo aqui não é apenas a imagem de jornais e a sensibilidade de leitores, mas a própria dinâmica da democracia, compreendida como o regime em que todas as ideias estão permanentemente abertas ao escrutínio. Para que isso efetivamente ocorra, é preciso tirar o cidadão de sua zona de conforto, expondo-o a visões de mundo diferentes das suas. Ainda que isso lhe ocasione sofrimento psíquico, é importante que ele se dê conta de que outras abordagens são possíveis e podem ser tão legítimas quanto a sua. Para funcionar plenamente, a democracia exige algum nível de insulto.


Endereço da página: